quinta-feira, 4 de março de 2010

DUBLAGEM É O ASSUNTO

No início da década de 1960, tramitava no senado brasileiro um projeto que, se aprovado, obrigava a dublagem de todo filme estrangeiro que entrasse no país. Entre os argumentos do parlamentar que apresentou o projeto alinhava-se a quantidade alta de analfabetos no Brasil que seria beneficiada já que o filme legendado estava inacessível a essa grande parcela da população. Por trás desse argumento, por si só estranho e inadequado para justificar uma mudança de tal monta, possivelmente existiam interesses comerciais e de classe.

Edwaldo Martins, jornalista paraense e um apaixonado por cinema, promoveu uma enquete sobre o tema e apresentou o resultado, opiniões de várias pessoas, no jornal “A Província do Pará” , de domingo, 12 de fevereiro de 1961, na página 2 do segundo caderno, página essa totalmente dedicada à Sétima Arte. O título, na parte superior, ocupava as oito colunas da página:


DUBLAGEM É O ASSUNTO


Edwaldo começou a apresentação da reportagem escrevendo:


HÁ MUITO que venho comentando e combatendo nestas colunas o hoje célebre caso das dublagens, ou melhor, o “Projeto Lindgreen”, que visa a obrigatoriedade da dublagem de toda e qualquer película estrangeira entrada no país. Como já esclareci por diversas vezes seria este um dos maiores absurdos – senão o maior – já realizados nesta terra de absurdos. Inconcebível, sob todos os aspectos, este projeto vem sendo combatido pela maioria dos que entendem e admiram o Cinema como realmente o é, a Sétima Arte.


O Edwaldo Martins prossegue citando intelectuais e artistas que já se manifestaram contra a dublagem e avança criticando possíveis grupos que poderiam beneficiar-se com a aprovação do projeto. Ele é incisivo na crítica ao senador que “devia era se preocupar com tantos males que atormentam esta terra [...]”, citando como exemplo a necessidade de criação de novas escolas. Edwaldo questiona a capacidade de atores “[...] contribuírem com a sua voz para a dublagem de um Charles Chaplin, de um Lawrence Olivier, de um Orson Welles, de um Marlon Brando, de uma Giulietta Masina, de uma Katherine Hepburn, de uma Anna Magnani, de uma Marilyn Monroe e de vários outros expoentes máximos do cinema universal?”

Edwaldo conclui a apresentação explicando o conteúdo da reportagem:


Com o intuito de proporcionar aos meus leitores o pensamento dos críticos, intelectuais, jornalistas e exibidores de nossa terra a respeito desse “monstrengo” que é a dublagem, é que resolvi fazer uma “enquete”, colhendo a opinião de cada um. Mostraram que são pessoas realmente mentalizadas e entendidas (o oposto do criador do tal projeto): todos foram, são e serão sempre CONTRA a dublagem. Assim sendo, aqui estão, pois, ACYR CASTRO, ELÁDIO LOBATO, ORLANDO COSTA, CARLOS GOMES LOPES, ADALBERTO AUGUSTO AFFONSO, ELISTON ALTMANN, ROBERTO RODRIGUES, SÉRGIO PAULO DE MACEDO, ARNALDO PRADO JR. e ARIOSTO PONTES, opinando sobre o que acham desse crime que ora transita pelo Congresso. – E. M.


As manifestações dos entrevistados, como já registrou o Edwaldo, foram contrárias à adoção da dublagem havendo, no entanto, uma exceção para casos específicos. Roberto Rodrigues cita o exemplo de “um filme que assistira em Munique [...] ‘Maravilhas da Natureza’, um trabalho do genial Walt Disney, narrado em alemão. Esse está certo, pois uma vez que não tem diálogos, justifica-se a dublagem.[...].

Vou comentar alguns dos depoimentos, citando trechos que achei mais relevantes por enfocarem diretamente a obra cinematográfica. Houve entrevistados que, também, levantaram possíveis intenções não declaradas para a apresentação do projeto, a inexistência de competência no Brasil para realizar um trabalho de tal monta e que fizeram críticas diretas ao senador proponente.

Começo por Orlando Costa, apresentado na reportagem como intelectual e advogado. Na verdade, ele foi um dos fundadores do cineclube “Os Espectadores”, na década de 1950. Esse cineclube teve uma importância fundamental na apresentação e divulgação do cinema como arte. Na antiga sede da Sociedade Artística Internacional (SAI), em Belém, na Rua João Diogo, nº 235 foram exibidas obras marcantes da cinematografia mundial. Após cada projeção, havia análises, críticas e debates coordenados por intelectuais da terra, em geral associados do cineclube. As sessões eram muito concorridas e marcaram significativamente aquele período na cidade com pessoas ávidas de conhecerem grandes realizações de grandes realizadores. Foi nessas sessões que aprendi muito sobre cinema; era o período no qual eu lia muito sobre a Sétima Arte e nada melhor para ampliar e complementar conhecimento apreciando filmes importantes, muitos deles citados nos livros que lia, e mais, avaliados nos debates por pessoas de reconhecido mérito intelectual e artístico.

O depoimento de Orlando Costa sobre a dublagem inicia-se com o registro de que não era a primeira vez que se falava, no Brasil, no emprego da dublagem. Ele cita experiências anteriores, exemplificando com o filme argentino “A Marquesa de Santos” e também desenhos animados de longa metragem de Walt Disney, opinando que nesses casos não houve reações pois “os filmes dublados não possuíam nenhuma qualidade capaz de ficar prejudicada com o uso dessa técnica”. Ele continua:


Agora, porém, que se fala em generalizar o emprego desse processo, creio que se faz necessário orientar a opinião pública, a fim de que possa estar no conhecimento dos prejuízos irremediáveis que serão causados aos filmes, mormente aos grandes filmes, com a sua utilização.


Em vez de tentar resumir outra parte do depoimento, volto à palavra ao professor de cinema Orlando Costa:


A essência da estética cinematográfica reside na mobilidade das imagens combinadas com o uso acertado do som. Falar em som, implica em dizer ruídos, diálogos e música. Ora, quando o realizador concebe o som para o filme, passa ele a integrar as características da obra. Qualquer alteração nele implica em mudar a própria obra original. O processo de dublagem consiste na substituição dos diálogos gravados na língua do país de origem do filme, por diálogos gravados na língua do país onde o filme será exibido. Consiste, pois, numa alteração substancial do elemento som, o que implica em dizer, que importa numa deturpação do conceito original do filme.


Em seguida, Orlando Costa exemplifica com Marlon Brando, ator de “Sindicato de Ladrões” e “Uma Rua Chamada Pecado” sendo dublado por uma voz desconhecida, considerando essa uma situação lamentável:


Quando se aprecia a interpretação de Marlon Brando, se aprecia no seu todo e desse todo faz parte a sua voz. Se essa voz for substituída, assistiremos apenas metade da interpretação. A outra metade, quiçá a mais importante, terá sido substituída por uma voz desconhecida.


Em seguida ele cita o gênero musical, quando a voz do ator que canta “[...] não pode ser substituída sob pena de não se estar ouvindo o artista que se aprecia em discos, digamos Frank Sinatra [...]”. Orlando Costa avança levantando a possibilidade de não se dublar a canção, “ apenas os diálogos e teremos como resultado uma interpretação a duas vozes: uma para as canções – a original de Sinatra e outra para os diálogos – a de um mocinho de rádio-novela”.

Orlando Costa considera os exemplos que apresentou como grosseiros, mas que “demonstram o quanto perderão, com a dublagem, os filmes a serem exibidos no Brasil”. Ele continua:


Para os aficionados, imaginamos ainda outro exemplo: “Pigmalião”, a peça de Shaw que foi levada à tela. Já pensaram nos diálogos desse filme, fundamentais quanto ao modo pelo qual foram ditos, sendo substituídos pela voz de um medíocre rádio-ator?


Orlando Costa encerra a entrevista comentando que ele ainda poderia tecer muitas considerações sobre o assunto, mas a exigüidade de tempo priva-o de fazer e que talvez em outra oportunidade volte ao assunto.


Eliston Altmann, intelectual, diretor da “Página Artística” de “A Folha do Norte”, começa o depoimento sobre a dublagem como segue:


Qualquer pessoa que considere o Cinema como expressão sintética de diferentes formas de arte não poderá aceitar a idéia de introduzir a dublagem nas películas estrangeira exibidas entre nós.


Em seguida ele especula sobre o possível interesse de proprietários de grandes empresas por trás do projeto, alegando que estão “empenhadas em aumentar ainda mais seus lucros fabulosos em detrimento da mensagem artística e didática que trazem esses filmes por piores que sejam [...]”. Altmann também faz restrições às legendas:


Mesmo sabendo que as versões das legendas que nos são impostas pertencem na maioria das vezes, a tradutores improvisados, lançados por editores menos avisados e inescrupulosos, preferimos que tudo continue como está a ouvirmos as vozes incultas dos atores de TV e emissoras do sul do país sobre sobreposta, violentamente, aos rostos de Giulietta Masina, Audrey Hepburn, Sir Lawrence Olivier ou Orson Welles, que, por sua vez, nos oferecem interpretações convincentes, em flagrante dissonância com os “locutores”.


Altmann faz, ainda, carga sobre as pessoas que não entendem de cinema, concluindo ser contra a dublagem e encerra dizendo que “[...] temos certeza, este é o ponto de vista da quase totalidade dos que se interessam por cinema neste país”.


Adalberto Augusto Affonso, exibidor, gerente da Empresa de Cinemas São Luiz Ltda. Mostra que:


O sentido da beleza da arte cinematográfica nas suas variadas expressões, desde o conjunto das imagens, da direção, da montagem, da interpretação, completou-se com o advento do som. E este trouxe ao cinema o que lhe faltava na sua manifestação final e decisiva: a voz dos artistas.



Logo em seguida ele avança sobre o valor da voz do artista: “Como aceitar agora a mudança dessas vozes, às quais já nos habituamos, e muitas delas até com inflexões inconfundíveis e perfeitamente identificáveis? ..,.” Affonso é veemente: “ Não! A dublagem é um atentado à seriedade e à honestidade do cinema que não pode se consumar”. E conclui considerando não acreditar na sinceridade dos que pretendem implantar a dublagem no país, e mais: “O autor desse projeto deve ser um inimigo do cinema querendo ridicularizá-lo”.


Acyr Castro, crítico de “A Folha Vespertina” e da Página Artística de “A Folha do Norte” – Equipe Gestalt, começa seu depoimento falando sobre a maneira anárquica com que se está conduzindo o debate sobre o projeto da dublagem considerando que Edwaldo Martins, em boa hora, estendeu-o ao nosso Estado, organizadamente, nos jornais em que escreve. Acyr sintetiza sua manifestação:


Resumo toda a minha argumentação numa pergunta que responde à premissa (“é a favor do cinema brasileiro”) dos adeptos do esdrúxulo projeto: onde o interesse nacional nisso tudo? Em que será beneficiado o produto indígena com a deturpação e a morte do produto de fora? Morte e deturpação da Arte, a propositura, além de errada do princípio ao fim, e ridícula no seu arrazoado de pseudo “nacionalismo”, esconde escusos objetivos – os de proteger meia dúzia de picaretas e canastrões do rádio, do teatro e da televisão.


Termino esta síntese com o meu depoimento, Arnaldo Prado Jr., crítico de “O Liberal”. Fiz uma rápida introdução à questão e em seguida entrei minha resposta nos reflexos no filme em si:


Antes de outra coisa, o filme é o resultado de um trabalho de equipe e o bom diretor (como bom artista) deve unificar todos os elementos disponíveis para a realização de um conjunto homogêneo e estético. Ora, a voz do ator é um elemento de grande significação e que está diretamente ligada à capacidade de interpretação do artista e às ponderações e correções de um diretor consciencioso. Como então, introduzir outra voz à imagem (expressões fisionômicas de um ator, voz de outro) sem as disciplinações do dialoguista e do diretor do filme, não prejudicando o valor artístico da realização? Surgiria então a equipe de dublagem e dela quanta coisa se pode antecipar!

Por esse e muitos outros argumentos a dublagem deve ser combatida.


Embora não tenha comentado todas as manifestações dos entrevistados, julgo que captei os pontos relevantes em relação ao tema naquele momento. De 1961 para 2010 algumas alternativas foram adicionadas à construção do filme referentes, sobretudo, às novas tecnologias e que de algum modo influenciam a produção final. No entanto, em essência, a dublagem continua alterando a obra.

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