terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

A Árvore da Vida

A Árvore da Vida (The Tree of Life, EUA, 2011), escrito e dirigido por Terrence Malick, é complexo, mas é inteligível. O título, no original e em português, já é um indicativo da abrangência do tema; uma árvore tem raízes, tronco e galhos com frutos e folhas que se projetam em várias direções; a pretensão do autor é claramente ambiciosa. O drama começa com a tragédia da perda de um filho de um casal que tinha três, história da vida de pessoas comuns e, talvez, uma das características que torna o filme bem aberto para apreciações diversas dentro da complexidade que vai sendo incorporada progressivamente. A década de 1950 é a referência temporal básica.
O sofrimento da mãe, o arrependimento e sentimento de culpa do pai pelo tratamento que dispensara ao filho começam a adensar a análise sobre a existência, que avança, praticamente sem atingir limite, em especulações psicológicas, filosóficas e religiosas.
As imagens do universo em fúria, em formação e se organizando, a origem, evolução e destino da matéria inerte e da vida, acompanhadas de imagens exuberantes, dão uma pausa à narrativa da tragédia humana, mas em seguida incorporam-se à busca de significado para a existência humana, à beleza da vida e às incertezas. Nem tudo no filme é para ser explicado, mas é para ser sentido no campo da emoção pura.
Os retornos à formação da família, ao namoro, à gravidez, ao nascimento, à realidade mais próxima das pessoas, ao cotidiano, às alegrias do convívio, à apreciação da natureza, trazem de volta a narrativa sequencial, em retrospecto; o passar inexorável do tempo, não há volta.
O’Brian (Brad Pitt) educa os filhos de modo rígido, chega a ser violento, sendo que Jack (Hunter McCraken), o filho mais velho, adolescente, é o alvo principal de ações paternas agressivas. O crescimento de Jack e dos irmãos se faz, nos primeiros tempos, acompanhado de carinho, carícias da mãe, a Senhora O’Brian (Jessica Chastain), de brincadeiras alegres e descontraídas das crianças e depois, de descobertas sobre o corpo e os próprios sentimentos, da percepção da espiritualidade, de cobranças e da imposição de limites.
A rigidez paterna causa forte reação de Jack que chega a desejar a morte do pai, ideia levada ao extremo de pensar em causar um acidente para matá-lo, oportunidade que surge quando O’Brian está debaixo de um automóvel suspenso por um macaco: bastaria um toque no macaco para o carro cair em cima do homem. A grosseria de O’Brian também leva a conflitos com a mulher a ponto de atingirem enfrentamento físico. Conselhos paternos atravessados são dados a Jack sob a alegação de que o pai se frustrou por ter sido passivo.
A morte e o sofrimento, a angústia, a insegurança, a incerteza, entram em análises verbais acompanhadas por imagens pertinentes ao discurso em sequências impregnadas de um sentimentalismo racional, construídas com bela fotografia e música incorporada em harmonia com o conteúdo e o ritmo da narrativa; a música é fundamental nas cenas de criação e expansão do universo. Na verdade, a fotografia, dirigida por Emmanuel Lubezki, a música de Alexandre Desplat e os sons de um modo geral, são essenciais para a harmonização de toda a diversidade imaginada por Terrence Malick.
Em sermão que se pode qualificar como pessimista, mas também realista, um sacerdote força os presentes a ouvirem reflexões que levam à frase síntese: “O infortúnio acontece aos bons também.”
Avançando no tempo, Terrence Malick leva o espectador a acompanhar Jack (Sean Penn) em fase adulta, transportando-o para o tempo atual com toda a carga dos conflitos pretéritos e mais a frieza do mundo moderno; inquieto e inseguro, Jack se debate em uma busca que o leva a inusitados locais até se encontrar com toda a família, em momentos emocionantes, carregados de símbolos, lembranças construídas com imagens de pessoas tranqüilas, enternecidas, intercaladas com vistas independentes da natureza. Os pais e Jack são apresentados em idade adulta e os irmãos ainda crianças. A música reforça o clima de harmonia. No final, Jack, na atualidade, um mundo de concreto, metálico e de arranha-céus, finalmente esboça um sorriso.
A árvore construída por Terrence Malick, de muitas raízes, ramificações e muitos galhos, gerou e deverá continuar gerando muitos frutos.

Paisagem na Neblina

Paisagem na Neblina (Topio Stin Omichli, Grécia, 1988), dirigido por Theo Angelopoulos com roteiro dele, de Tonino Guerra e de Thanassis Valtinos, enfoca o drama de duas crianças, uma menina de 11 anos, Voula (Tania Palaiologou), e um menino de cinco, Alexandro (Michalis Zeke), que adotam atitudes de adultos e são lançados, sem nenhuma proteção, no mundo despreparado para compreender e cuidar da infância. Eles vão sendo oprimidos seguidamente quando buscam um sonho: encontrar o pai que estaria na Alemanha, na verdade uma mentira inventada pela mãe deles para tentar encobrir o que nem mesmo ela sabia: quem eram os pais das crianças?
Um filme introspectivo, para reflexão, não só pelo tema, mas, sobretudo, pelo ritmo narrativo cadenciado por longos planos, as imagens permanecem na tela sem mudanças significativas, verdadeiros planos-sequências, que condicionam o espectador, exige uma postura reflexiva durante a exibição sob pena de se achar o filme monótono; é dado tempo, pelo estilo do diretor, para que cada um seja absorvido emocionalmente pelo drama das crianças, seja inserido numa tragédia que se aproxima inexoravelmente, não há como se esperar um final feliz. A música é um componente sensível, em vários momentos amplia-se o som com função de reforço às imagens; chama-se a atenção do espectador sublinhando o visual com explícita pontuação sonora.
As crianças, sem bilhetes de passagem, tentam várias vezes até que conseguem entrar em um trem com destino à Alemanha. Este foi só o primeiro obstáculo a vencer, o mais fácil. São flagrados sem os bilhetes e por isso deixadas na primeira parada do trem com o responsável pela estação. Um policial leva as crianças para deixá-las com um tio, irmão da mãe, claro. Em conversa reservada com o policial, o homem esclarece a situação e diz que não pode ficar com as crianças. A menina, no entanto, ouve a explicação do tio sobre a paternidade deles e, revoltada, diz que é mentira, que o pai está, sim, na Alemanha.
Levadas a um posto policial, elas escapam no momento em que começa a cair neve e as pessoas vão para a rua contemplar o fenômeno. Recomeça, então, a caminhada rumo à Alemanha. Eles conseguem pegar outro trem, mas não por muito tempo, fogem da fiscalização e voltam a caminhar, a pé.
O sonho das crianças é explicitado em monólogos oníricos da menina, por trás das imagens e sobre elas. Em várias ocasiões explicitam as esperanças de encontrar o pai; algumas frases são dirigidas diretamente a ele, como uma mensagem.
Como a narrativa desenvolve-se ao longo de uma extensa viagem, de trem, de caminhão, de motocicleta e a pé, as várias paradas em diversos locais dão oportunidade à inserção de fatos e situações, alguns deles inusitados e que não estão diretamente ligados à história, mas que servem para enriquecer, ampliar o foco da trama. Angelopoulos faz incorporações com muita propriedade e sensibilidade, dando elementos adicionais para a análise do filme e que, por associação e dedução, se aplicam ao ser humano em geral em sua busca de significado para a vida.
Um grupo teatral de parcos recursos em busca de um local para se apresentarem surge no caminho das crianças, mais diretamente um jovem do grupo, Orestes (Stratos Tzortzoglou), que lhes dá apoio; eles se tornam amigos, Orestes está prestes a se apresentar para o serviço militar, ele tem uma motocicleta. Assim, os meninos se deslocam de trem, a pé, de caminhão e de motocicleta. Os garotos passam um tempo com Orestes. Depois voltam a caminhar sós.
Além das dificuldades inerentes a caminhada sem recursos e até por causa disso, vem a crueldade. A menina é estuprada violentamente por um caminhoneiro que havia dado carona aos dois viajantes que buscam um sonho irrealizável. Mas não desistem, continuam em direção à Alemanha.
Eles voltam a se encontrar com Orestes e a motocicleta passa a ser o meio de transporte dos três, antes de nova entrada em trem até a fronteira com a Alemanha.
Vão a uma praia, alegres pelo reencontro; Orestes tenta uma dança com Voula, mas ela não corresponde; na verdade a proximidade com o rapaz causa nela uma reação explosiva, ela se afasta correndo, abaixa-se à beira mar, brinca com a areia. Ela está mudando, está amadurecendo, é mulher. Algum tempo depois os dois meninos estão dormindo numa cama de hotel, Orestes está com eles, em outro quarto. A menina se levanta, sai do quarto, caminha até outra porta, abre-a e some na escuridão. O plano seguinte mostra uma cama vazia e a menina acendendo a luz. Novo corte e Orestes aparece, na rua, sentado diante do mar.
Destaco outro momento. Orestes com os garotos vai de motocicleta a um campo aberto onde dezenas de motoqueiros se deslocam da direita para a esquerda, da esquerda para a direita, para frente, para trás. Orestes vende o veículo, mas diz que só o entrega no dia seguinte, ele pretende levar as crianças na estação ferroviária. É uma sequência de muita movimentação externa, que vai terminar em um bar-boate, um ambiente de penumbra, fumaça de cigarro, pessoas se movimentando em ritmo de dança ao som de música, certamente um ambiente inadequado e carregado para as crianças, que estão numa escada, sentadas. Mas, o que há de mais chocante é que Toula vê Orestes se afastar com um rapaz, o comprador da moto; as imagens dão a entender que os dois vão ter um relacionamento íntimo.
Imediatamente após Toula ficar estática observando a cena, ela e o irmão aprecem na rodovia, caminhando, é noite. Orestes chega de moto, tenta se reconciliar com a menina, mas ela é radical. Continua a caminhada com o irmão e deixa Orestes para trás.
De um modo inusitado a menina consegue dinheiro, compra passagens de trem, e então não temem mais a fiscalização. Quando o fiscal chega ao compartimento onde estão, ela entrega-lhe os bilhetes, o menino está ao lado dela, os dois se olham, sorriem, finalmente podiam ir tranqüilos. No entanto, uma voz no alto falante do trem os traz novamente à dura realidade: “Por favor, passageiros com destino à Alemanha... preparem seus passaportes para o controle de fronteira”. As crianças olham para cima, para o alto-falante de onde vem a voz, parece não acreditarem no que ouvem: “Repito: por favor, passageiros com destino à Alemanha preparem seus passaportes para o controle de fronteira”. Há um corte.
A cena subseqüente mostra um soldado caminhando de um lado para o outro em uma parte elevada do terreno. Os meninos aparecem e cruzam a elevação tão logo o soldado se afasta. Descem no terreno. Uma torre de controle aparece, na parte superior um holofote se desloca iluminando o terreno com fachos de luz. A menina fala na escuridão: “Do outro lado do rio fica a Alemanha”. O foco de luz da torre passa e eles aproveitam e correm na escuridão. Agacham-se na base da torre. Eles correm e entram em um pequeno barco que está na margem do rio.
Centrado no sonho das duas crianças, o diretor e os roteiristas utilizaram, também, um recurso próprio do cinema: a incorporação da narração oral sobre as imagens filmadas. A menina Voula, em sonhos, relata o que se passa com eles, dirigindo-se ao pai ausente. Em um desses momentos, enquanto dorme em um banco de um bar e o menino de joelhos no banco olha para fora por uma janela, ela mesmo, ou melhor, a voz dela, complementa a cena: “Querido pai: Quão longe você está! Alexandro disse que em seus sonhos enxergava você muito próximo. Se ele esticasse a sua mão ele teria tocado você”.
Em outra ocasião, enquanto dorme em um trem, volta o complemento oral:

Viajamos continuamente. Tudo passa rapidamente. As cidades, as pessoas. Mas às vezes nos sentimos muito cansados que esquecemos de você e não sabemos se vamos prosseguir ou retornar. E então nos perdemos. Alexandro cresceu muito. Ele se tornou muito sério. Veste-se sozinho. Diz coisas que você nem imagina. Eu, estes últimos dias, fiquei muito doente, fervia de febre. Agora, pouco a pouco estou melhorando. É uma longa caminhada até a Alemanha.
[...]


No final do filme, a voz de Voula é fundamental, repete palavras do início do filme e então, complementa o conjunto.
Talvez a sequência inusitada mais significativa seja a que envolve os três personagens centrais próximo de um monte de lixo em uma rua. Orestes pega nos detritos um pequeno pedaço de filme, alguns fotogramas, olha-o contra a claridade, o menino diz que nada vê na película, mas Orestes insiste:

- Olhe com atenção.
- Nada
- Está vendo? Atrás da neblina. Atrás. Distante....Você não vê uma árvore?
- Não.
- Eu muito menos. Estava brincando.


Mesmo sem nada impresso, o menino pede o pedaço de filme e Orestes o entrega. Digo que é importante a sequência porque tem a ver com a cena final como se irá ver mais à frente.
Bem, voltemos ao ponto da narrativa no qual parei. Os meninos chegam à fronteira, um soldado-sentinela caminha de um lado para o outro, há um posto de controle, uma torre no alto da qual há um holofote cujo facho de luz se desloca pelo terreno à busca de intrusos. Há um rio, a Alemanha está do outro lado. As crianças correm evitando a luz. Um pequeno barco está na margem. Eles entram no barco que desliza lentamente pela água, afastando-se da margem em direção ao outro lado, à Alemanha. Está escuro, mas o facho ilumina o barco, há um grito de alerta e um tiro seco. Escuridão.
Então a tela fica totalmente clara, inicialmente sem imagem, só a neblina branca. Lentamente aparecem vultos. O garoto se levanta.

- Acorda, já amanheceu, estamos na Alemanha.

Aos poucos a imagem do menino vai se firmando.

- Estou com medo.
- Não tenha medo. Vou lhe contar uma história. No princípio era a escuridão. No princípio era a escuridão.

O menino continua olhando para a câmera, para o espectador, acena com a mão direita.

- Então fez-se a luz.

Ainda na neblina, a menina se aproxima do garoto. A música entra dolente. A neblina está se dissipando. Os dois olham para uma árvore, à frente deles, distante, agora eles estão de costas para a câmera. O garoto segura a mão da menina e os dois saem caminhando em direção à árvore. Uma lenta caminhada com a música acompanhando. Em dado momento eles correm. A câmera fica no mesmo lugar, eles agora estão longe. Encostam-se no tronco da árvore. É como se eles se fundissem à árvore, mas se destacam no tronco, são figuras escuras. A tela escurece, é o fim do filme.
Na verdade, no início do filme, na escuridão do quarto , após tentativa frustrada de entrarem em um trem, na hora de dormir, um deles narra o conto deles:

No princípio era a escuridão e depois se fez a luz. E a luz se separou das trevas e a terra do mar e se formaram os rios, os lagos, e as montanhas. E então as flores e as árvores, os animais, os pássaros.

Toda essa narrativa é feita com a tela escura. De repente um ranger de porta e uma fala: “Deve ser mamãe. Este conto não vai acabar nunca, sempre nos interrompem”.
Por baixo da porta o piso externo ao quarto aparece iluminado, ouvem-se passos. Alguém passa pela luz, a porta é aberta e o quarto recebe luz de fora. A claridade avança até as crianças, elas estão deitadas na cama, fingem que dormem. A porta é fechada, tudo escurece.
Paisagem na Neblina é belo, instigante, polêmico, cruel, poético. Imagens, palavras, sons diversos, música, todos esses elementos se encaixam, se harmonizam criando uma cadência, um ritmo narrativo formalmente adequado ao desenvolvimento do conteúdo. Para finalizar uma pergunta: a última sequência se passa após a morte das crianças, em um plano puramente espiritual, ou é um recurso próprio do cinema no campo do ideal imaginado pelos autores? Para mim cabem as duas interpretações, sendo que a primeira está mais para a lógica da narrativa, as crianças foram baleadas e morreram.