segunda-feira, 27 de setembro de 2010

À Prova de Morte

Vou começar o comentário sobre À Prova de Morte (Death Proof, EUA, 2007), escrito e dirigido por Quentin Tarantino, que também é o diretor de fotografia do filme, registrando a reação da platéia na exibição do dia 17 de setembro de 2010, no cine Líbero Luxardo, quando apareceu na tela THE END sobre a imagem das três mulheres em pé e o homem caído na pista da rodovia, completamente liquidado: palmas vibrantes, gritos e risos, que podem ser interpretados como de aprovação entusiasmada e satisfação com o desfecho da história.

A partir do momento em que Stuntman Mike (Kurt Russell) é baleado por uma das mulheres, em momento anterior, e de perseguidor, caçador, passa a perseguido, caça, na rodovia, no momento em que as mulheres assumem o comando das ações, tornam-se agressivas e ele acovardado, apavorado, muitos espectadores riram. A surra que ele pega, no final, sendo esmurrado impiedosamente, girando dos punhos de uma mulher para as outras, registrada dinamicamente pela câmera e em detalhes, também foi motivo de risos. Como as cenas são de violência e não cômicas, nestas sendo natural o riso, fica a pergunta: por que riram? Deixo para cada leitor tentar uma resposta, mas também tento uma interpretação: seria um modo de aliviar as tensões acumuladas pelo espectador durante a exibição do filme por conta da aproximação de um previsível desfecho no qual Mike iria dar-se mal e também porque o valentão transformou-se em um covarde? Mike se afrouxou para as mulheres, então o riso era de deboche para ele; também, porque a situação, em si, foi ridícula; ou porque a cena foi exagerada. Bem, chega!

Com finalidade didática, para facilitar a análise, pode-se dividir À Prova da Morte em três partes. A primeira se estende da apresentação do primeiro grupo de mulheres até a violentíssima colisão frontal entre o Death Proof , dirigido pelo Stuntman Mike, e com uma de suas vítimas no lado do carona, e o automóvel ocupado pelas mulheres. Esta última cena, repetida de diferentes maneiras, detalha com incrível força emocional, o efeito devastador causado, nas pessoas, pelo choque frontal de dois corpos em movimento, em alta velocidade, e se dirigindo em sentidos opostos, na mesma direção, a velocidade do impacto sendo a soma das duas velocidades. Lembrei-me das aulas de Física, ainda no tempo de colégio: cinemática e dinâmica.

A segunda parte, de curta duração, se comparada com as outras duas, é registrada no hospital onde Stuntman Mike foi atendido e se recupera do acidente que ele mesmo provocou, deliberadamente. O xerife da localidade dialoga com o filho e analisa o acidente explicando porque é praticamente impossível enquadrar Mike como assassino ao mesmo tempo em que define, em poucas palavras, a avaliação que faz sobre a personalidade doentia do dublê, um psicopata. É a explicação necessária para indicar que Mike irá continuar em atividade, indicação da terceira parte do filme que vai da apresentação de um novo grupo de mulheres até o castigo final do personagem, a violência sofrida por Mike como consequência da violência que ele exercera, pois a toda ação corresponde uma reação igual e contrária (a Física de novo), no caso a violência gera a violência. Mas, voltemos ao início do filme.

Primeiro a câmera foca os dois pés de uma mulher apoiados na parte superior do painel frontal interno de um automóvel, vistos de dentro do veículo, que está em movimento; o pé direito se balança no ritmo da música de fundo. Há um corte e agora são focadas as pernas de uma mulher andando no interior de um apartamento, ela está vestindo uma blusa, estava só de calcinha e sutiã. Ela se deita em um sofá, em pose semelhante a de uma mulher fotografada em um enorme painel, colocado na parede acima do sofá; ela pega alguma coisa em cima da mesinha que está em frente ao sofá. Novo corte e o plano seguinte é filmado do interior de um automóvel em movimento focando uma rodovia de terra, à frente. Vê-se que no capô escuro está pintado, em branco, um crânio humano. Sobre as imagens dessa primeira sequência estão sendo apresentados os créditos do filme. Outro plano focando os pés da mulher do apartamento a partir da visão dela para frente; ela se levanta do sofá e caminha em direção a uma janela; destaque para suas belas nádegas. Olhando pela janela ela vê, em baixo, vindo de um carro, duas mulheres que se aproximam do apartamento, uma delas vem correndo, tem “que dar a maior mijada do mundo.” A mulher apressada sobe as escadas com a mão entre as pernas, corre. A cena é cortada e a câmera foca uma rua de cidade, pequenas edificações, em um traveling para frente, a partir do interior de um carro à altura de alguém sentado no veículo. Estamos na cidade de Austin, Texas.

Três mulheres estão no interior do carro, uma delas dirige, são as mulheres anteriormente mostradas: Shanna (Jordan Ladd), Arlene (Vanessa Ferlito) e Julia (Sydney Tamiia Poitier). Conversam, discutem, agridem-se cordialmente em palavras. Cada vez que passam por grandes cartazes na lateral da estrada promovendo Jungle Julia, as mulheres gritam alegres, riem, mexem braços e pernas em manifestação de apoio à colega; Julia é DJ da rádio local. Durante a conversa das três, que dura cerca de cinco minutos, Tarantino usa sete enquadramentos diferentes, alternando-os, com repetições, enfocando uma ou duas mulheres em cada plano. Nessa conversa, uma primeira pintura dos perfis das três é apresentada aos espectadores; elas falam sobre elas mesmas, suas experiências, relacionamentos, inclusive sexuais.

Depois da conversa dentro do veículo a câmera se posta na margem da estrada focando o carro das mulheres fazendo uma curva e desaparecendo da vista, um cartaz de Jungle Julia; ouve-se o grito delas de apoio à colega. Logo atrás, e também fazendo a curva, o carro escuro com a caveira branca as segue; o ronco do motor indica que, tanto o carro como o motorista tem algo de estranho.

O próximo ponto de concentração das três mulheres é o Guero’s Taco Bar. E, então, não estão mais sós, interagem com outras mulheres e com homens. Aliás, as mulheres são superiores aos homens, possuem personalidades fortes, melhor definidas, sabem o que querem, são liberadas, bebem, fumam erva, divertem-se desinibidamente, fazem sexo com liberdade, não são reprimidas. No ambiente multifacetado do bar, Tarantino reserva a si um papel, ele é Warren, o barman, amigo das mulheres. O carro escuro com a caveira branca, estilizada, pintada no capô, e seu ocupante vão ser apresentados com clareza. De dia, após chegarem ao Guero’s, antes de entrar, Arlene ficou fumando à entrada; ela nota o veículo se deslocando lentamente bem à frente do bar; em seguida o motorista acelera ao mesmo tempo que freia, o carro balança, depois sai em disparada; a mulher observa com fisionomia interrogativa.

À noite, a figura escura do veículo, na chuva, causa, novamente, estranheza a Arlene. O carro surge à vista dela, misterioso, estacionado à frente do bar, depois que Warren manda acender uma luz externa á edificação. Depois, agora dentro do bar, o motorista se apresenta a Pam (Rose McGowan), uma freqüentadora do ambiente que, sozinha, buscava uma carona. Iniciada uma conversa, ela pergunta-lhe o nome e ele responde Stuntman Mike, incorporando ao nome sua antiga atividade de dublê de filmes, que tivera maior destaque com acidentes de carros. Abro, aqui, um parêntese, para registrar que as paredes do bar são decoradas com vistosos cartazes de filmes.

Em dado momento, quando Mike conversa com Arlene e pergunta-lhe se ela tem medo dele, da cicatriz que tem no rosto. Ela responde direto: “É o seu carro.”

Falei que as mulheres são destacadas em relação aos homens, no entanto, os automóveis, começando pelo de Mike, merecem um tratamento especial de Quentin Tarantino. Ainda volto a falar sobre carros.

No Guero’s a preparação para a primeira grande tragédia é elaborada meticulosamente pelo diretor. Tarantino demonstra ser um exímio condutor de atores sendo que, em Death Proof, ele contou com excelentes interpretações femininas; aliás, no filme, as mulheres são um espetáculo à parte. Há longas sequências em que só elas aparecem, em cenas nas quais predominam os grandes planos: conversam, riem agridem-se, espantam-se, analisam, criticam, defendem-se...Só vendo para admirá-las como atrizes e belas mulheres. Kurt Russell está convincente: valentão durante a maior parte do filme, covarde ao final, transformação bem executada pelo ator.

O erótico, presente nas conversas das mulheres e nas próprias imagens delas, ganha explicitação na dança de Arlene para Mike, um excitante exercício que Vanessa Ferlito executou com convicção. Para qualquer moralista condenar, também com convicção.

Não é só com imagens que Quentin Tarantino é capaz de pintar quadros convincentes. As explicações que Stuntman Mike dá para Pam sobre o próprio carro e, de um modo geral, sobre carros utilizados por dublês são diretas e claras. Mike e Pam estão do lado do automóvel escuro dele, ela pediu carona e ele vai levá-la. Sobre o carro ela começa dizendo:

- Esta merda dá medo.

- Sim, bem, quis que fosse impressionante e o que mete medo tende a impressionar.

-É seguro?

- Não, é melhor quê seguro. É à prova de morte.

Só aqui se sabe a que se refere o título do filme, é essa a característica fundamental dada ao carro por seu dono. Pam continua:

-Como é que se constrói um carro a prova de morte?

- Bem, é o que os dublês de risco fazem. Já viu um filme em que há batidas de carros em que é impossível alguém sobreviver? Bem, como acha que realizam isso?

- Efeitos especiais.

- Bem, lamentavelmente, Pam, hoje em dia, na maioria dos casos, é assim. Mas na época do ‘tudo ou nada’, na época do ‘Vanishing Point’, ‘Dirty Mary Crazy Larry’ e ‘While Line Fever’, os carros de verdade [se] chocavam contra outros carros de verdade. Gente verdadeiramente tonta era quem os conduzia. Se você é da equipe de dublês, o carro que pretende atingir é reforçado por todos os lados e vice-versa. E tem um carro à prova de morte.

- Faz sentido. Não sabia que podia [se] construir um carro à prova de morte.

- Posso bater esta beleza contra uma parede a 200 quilômetros por hora. Só para saber o que se sente.

Em seguida Mike mostra o interior do carro. Pam pergunta:

- Por que é que o assento do passageiro está numa caixa?

- Bem, este é um carro usado em filmes. Às vezes, enquanto a batida está sendo filmada, o diretor quer por uma câmera dentro do carro, obter uma perspectiva desde dentro. É aí que se coloca a câmera. Chamavam-na de ‘caixa de choque’.

Se se quiser falar em homenagem, aqui Tarantino faz aos dublês, aos antigos, que corriam grandes riscos de vida. É, também, uma chamada aos espectadores que curtiram filmes nos quais os carros são destaque nas histórias. A curtição em carros vai ser, novamente, destacada no que chamei terceira parte do filme e, dessa vez, quem manifesta admiração são mulheres. Depois veremos detalhes sobre isto.

Após mostrar o automóvel, Mike vai dar a prometida carona para Pam; ele vê o carro das mulheres saindo do estacionamento, olha diretamente para a câmera, para os espectadores como quem diz: “Aguardem! Vão assistir algo espetacular!”

A crueldade de Mike começa a se manifestar quando, os dois já dentro do carro, ele fala para Pam:

- Pam! Lembra-se quando eu te disse que este carro era à prova de morte? Bem, não estava mentindo. Este carro é 100% à prova de morte. Mas para usufruir o proveito desse fato tem que estar sentado neste lado.

O lado do motorista, então, é isolado por um vidro transparente, inquebrável. Vai começar uma sequência de violência explícita, muito a gosto de Tarantino. Pam é atirada, várias vezes, para frente e para trás, conforme o dublê freia abruptamente ou acelera o veículo; ela se bate nas duas situações. A mulher se desespera, implora, sangra no rosto até desmaiar.

Então, Mike segue pelo caminho seguido pelas outras mulheres, ultrapassa o carro que as conduzia e depois de estar bem à frente, posiciona seu carro na mesma direção em que vem o carro delas, mas em sentido contrário. As mulheres estão alegres, eufóricas, ouvem música, cantam, estão bebidas, drogadas, uma delas está com a perna posicionada para fora veículo.

Mike aguarda a aproximação do carro das mulheres; está posicionado em posição de partida. Ele acelera, os pneus cantam pelo atrito com a pista, o carro vence a inércia (novamente as aulas de Física) e avança aumentando progressivamente a velocidade (movimento acelerado, a Física). Não vou descrever o violento choque frontal entre os dois veículos e o consequente dano catastrófico. Registro, apenas, que Tarantino repete quatro vezes o momento do choque e os estragos nos veículos e nas pessoas; a repetição, na verdade, é feita mudando os planos de filmagem para detalhar cada aspecto do acidente. As imagens são contundentes; o diretor do filme, que também é o diretor de fotografia, realça o quanto quer, e pode, um violento choque frontal de veículos, escolha apropriada para apresentar a destruição mecânica e a mutilação de corpos.

A segunda parte do filme, segundo minha divisão didática, segue um estilo diferente da primeira. É predominantemente verbal. Em um diálogo entre o xerife da localidade e seu “Filho Número Um” (lembrei-me de Charlie Chan). São dadas explicações detalhadas que, praticamente, inviabilizavam a condenação de Stuntman Mike como assassino e apresenta a suposição de que o crime teve motivação sexual. Não vou detalhar o diálogo que levou a essas conclusões, quem assistiu ao filme sabe do raciocínio desenvolvido pelo xerife, que chamou Mike de Frankenstein, certamente pela cicatriz no rosto de Mike, embora Frankenstein seja o médico e não a criatura. Destaco, no entanto, um pequeno trecho. O filho perguntou se alguma das mulheres sobreviveu obtendo do xerife a resposta:

- Merda. Duas toneladas de metal a 300 quilômetros por hora. Carne e osso e o velho Newton. Todas as princesas morreram.

Claro, o xerife se referia às leis da mecânica de Newton. A Física do colégio...

Essa sequência intervalar explicativa, passada nos corredores do hospital onde Mike estava se recuperando após o acidente que ele mesmo provocou contém uma síntese, muito bem elaborada, em palavras, necessária e suficiente para dar continuidade à linha principal da história, indicando que Mike vai continuar a atacar.

Vamos agora à terceira parte. Na tela escura a indicação do local e o tempo decorrido após o acidente:

LEBANO

LÍBANO

TENNESSEE

TENNESSEE

14 months later

14 meses depois

A música de fundo é bem ritmada. Um plano geral, um carro parado, vista de uma rodovia. Vindo da esquerda, cantando os pneus um carro manobra e estaciona de frente, a 90º com a calçada. O colorido da cena muda para preto e branco. Stuntman Mike é o motorista e o carro é um Dodge Charger 1969, escuro. Ah! O primeiro carro dele era um Chevy Nova 1970. Um carro estaciona próximo ao dele, de ré, também a 90º com a calçada; é ocupado por três mulheres. Mike as observa. Tudo vai começar de novo.

O filme permanece em preto e branco durante pouco mais de seis minutos, quando volta a ser colorido; por quê? Não sei. Talvez para marcar um recomeço. Uma quarta mulher se reúne ao grupo. São elas: Kim (Tracie Thoms), Lee (Maria Elizabeth Winstead), Abernathy (Rosario Dawson) e Zoe Bell (como ela mesma). As personalidades delas vão sendo mostradas em grande parte por conversas entre elas: independentes, libertas, falam de suas experiências sexuais fazendo observações críticas sobre seus parceiros, gozações; uma delas refere que a perversão de um de seus parceiros era vê-la fazendo xixi e elas, então, cantarolam uma música usando a palavra xixi. Como as primeiras, elas são atraentes. Novamente Tarantino usa o interior de um automóvel como local de conversa entre as mulheres. Ele usa, nessa composição, também, sete tipos de enquadramento, alternando-os, focando-as dentro do veículo, uma, duas ou até três mulheres em cada tomada.

Em outro momento, em uma lanchonete, o diretor desenvolve uma conversa entre as quatro em um único plano sequência de mais de sete minutos. A câmera enfoca-as nos mais variados ângulos com uma fluidez incrível captando belas mulheres, interpretações fluentes. É durante essa conversa que volta o interesse por carros e a escolha de um determinado modelo à venda na cidade e que vai ser o carro a batalhar com o carro do dublê, em uma sequência de perseguição das mais dramáticas porque é construída com filmagens externas e dentro dos carros, sobretudo no das mulheres, momentos em que elas externam, com fúria, toda a raiva contra Stuntman Mike.

É Zoe, na lanchonete, que faz a apologia dos automóveis e os filmes que os realçaram. Ela começa assim:

- Para mim não faz sentido estar nos Estados Unidos se não dirijo um desportivo de Detroit. Quero dirigir um Dodge Challenger a toda velocidade.

[...]

- Tem que ser um Dodge Challenger 1970 com motor 440.

E melhor. Ela já localizou um anúncio de venda, em um jornal, que ela exibe para as companheiras, de um Dodge Challenger 1970 de série, motor 440, pintado de branco.

[...]

- Kowalski!

- Kowalski de “Vanishing Point”. Amiga, é um maldito clássico! Se conseguir que este cara me deixe conduzi-lo sozinha, irei explodir as portas daquele carro.

- O que é “Vanishing Point”?

- Abs, é provável eu ser analfabeta. É um dos melhores filmes norte americanos já realizados.

E a discussão fica acalorada:

- Como, não viu filmes de John Hughes?

- Claro que vi. Sou uma mulher. Mas também vi filmes de carro...”Vanishing Point”. Dirty Mary Crazy Harry. Gone in 60 Seconds

- A verdadeira, não aquela porcaria com Angelina Jolie.

Ainda continuam falando de carros, assunto não muito usual em conversas de mulheres...O passo seguinte é ir ao vendedor do Dodge. E conseguiram enganá-lo; três saíram no carro: Zoe, Kim e Abby. Lee ficou com o vendedor, foi enganada pelas amigas, que a indicaram ao homem, sem ela saber, como atriz pornô e que iria retribuir com sexo o empréstimo do carro.

Death Proof é um filme de muita movimentação, muita ação, que explora a violência a partir de um personagem psicopata, que usa um automóvel reforçado em sua estrutura e que foi utilizado por ele no papel de dublê em cenas de acidentes perigosos em filmes, no período em que o dublê chocava seu carro de verdade com carros de verdade, nada de efeitos especiais como agora. Stuntman Mike podia bater a beleza de veículo que tinha a 200 quilômetros por hora só para saber o que sentia. Um esporte radical que ele exercia após abandonar a carreira, para compensar suas deficiências e frustrações, entre elas as de natureza sexual, o xerife especula no filme.

A violência do personagem é dirigida contra mulheres, belas mulheres, sensuais, excelentes atrizes, pelo menos capazes de criarem tipos perfeitamente adequados para exporem, com competência, suas belezas físicas com sensualismo, chegando ao erótico em algumas cenas. Tarantino, na verdade, se limita a explorar questionamentos de menor profundidade porque construiu os personagens limitando-lhes as ambições, expectativas e especulações. Interessou-se, mais, em explorar a dinâmica externa da linguagem cinematográfica, se é que posso falar assim sem agredir a teoria; aliás, isto ele faz muito bem.

Na rodovia, com o Dodge Challenger branco, Zoe convence Kim a executarem o que elas chamaram antes de Ship’s Mast, quando explicitaram que eram dublês. Depois de se prepararem convenientemente, e sob o espanto de Abby, Zoe fica em cima do capô do carro, segurando-se em cintos presos no carro, enquanto Kim acelera o veículo. Esporte radical. Zoe se diverte realizando peripécias de frente para o vento. Surpresa desagradável. No melhor da brincadeira surge Stuntman Mike, vindo por trás, e com seu carro bate violentamente na traseira do Dodge. Começa uma longa sequência em que Mike fica em perseguição e Zoe lutando para se manter em equilíbrio em cima do capô do Dodge. As cenas construídas por Tarantino desafiam as leis da mecânica; se as respeitasse, ao primeiro choque Zoe cairia do capô. Desequilibrando-se a cada choque, Zoe desliza no capô de um lado para o outro, para frente e para trás segurando-se nos cintos e no que pode na carroceria do carro. Música, ruídos, variação de planos, fora e dentro do carro, cortes, frases furiosas das mulheres, até que Mike parece ter vencido. Os carros derrapam, o de Mike fica lateralmente fora da pista, em terreno mais baixo; o Dodge Challenger parado na pista. Mike, fora do carro, em pé, dirige-se às mulheres:

- Ouçam, pequenas. Isto foi divertido. Bem, adeus (Well, adiós).

E ele levanta os braços, está do lado oposto e protegido pelo carro, mas ao levantar os braços, surpresa. Um tiro atinge-lhe o braço esquerdo. Ele pragueja, entra apressadamente no carro e foge. Os tiros foram dados por Kim. Sabia-se, pela conversa na lanchonete, que ela usava um Roscoe, uma pistola para se defender, nada de spray de pimenta ou faca.

Zoe escapara incólume. Quando o carro derrapou, ela foi atirada no mato, à margem da rodovia,mas não se feriu. Newton venceu! Em parte. E, então, as três resolveram ir atrás de Mike. Nova sequência de perseguição nas estradas, agora Mike na frente e as mulheres atrás, numa perseguição implacável. Entram por rodovias com tráfego, interferem no fluxo, carros se acidentam, mas o Dodge Challenger 1970 e o Dodge Charger 1969, apesar de estarem em pedaços, tem que continuar, assim o roteiro o exige.

Desde que foi baleado, Mike entra em um processo de deterioração psicológica e as mulheres em um processo de afirmação, na verdade de vingança, de fúria, Mike tem que ser punido até a morte. Também nessa exacerbação, Tarantino é eficiente e eficaz, não relaxa em nenhum momento. Deixo os detalhes e vou para o final.

Depois de ser literalmente arrancado, puxado pelo braço baleado sob intensa dor, e levado para a pista de rolamento da rodovia onde foi seguidamente esmurrado, momento construído com planos variados, cortes rápidos, a câmera registrando cada aspecto da surra, acompanhando cada segundo da ação, como um todo e os detalhes dos movimentos dos personagens, pernas, mãos, braços e sobretudo o rosto ensangüentado de Mike, finalmente Zoe gira sobre o próprio pé esquerdo e aplica um violento chute na cabeça do inimigo. Ele cai, fica estatelado no chão. As três comemoram, pulam, levantam os braços. A imagem é congelada. A indicação de THE END vem crescendo no centro da tela, que em seguida escurece e surge:

Written and Directed

by

QUENTIN

TARANTINO

Parece que tudo acabou, mas não, Tarantino ainda não está satisfeito com a violência final; volta a imagem em movimento da cena final, as mulheres gritando ainda com os braços levantados. Baixam os braços, dançam em volta de Mike. E vem o golpe final, agora sim. Abernathy levanta a perna direita, baixa-a rápido e acerta com violência a cabeça de Mike. Estava consumado o castigo. Voltam os créditos, intercalados com imagens de mulheres.

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

A Ilha Nua

Revi A Ilha Nua (Hadaka no Shima, Japão, 1960), filme dirigido por Kaneto Shindo, que é também autor do roteiro, na manhã do dia 9 de agosto de 2010, antecedendo a exibição à noite do mesmo dia no Instituto de Artes do Pará (IAP), uma programação do cineclube Alexandrino Moreira e da Associação de Críticos de Cinema do Pará (ACCPA), momento em que, também, estive presente.

Após a exibição no IAP, minha primeira manifestação foi considerar A Ilha Nua um belo filme, composto exemplarmente em imagens diversificadas quanto à amplitude e a duração dos planos, destacando a natureza: ilha, rios, montes, céu, nuvens, sol em expressivos planos gerais, de conjunto e de detalhe e inserindo nela uma família que vive isolada na ilha em seu trabalho local de agricultura, e eventual pesca, e nas necessárias idas ao continente em busca de água para irrigação e para levar os dois filhos, que também colaboram nos trabalhos de subsistência, para estudar.

O filme não tem diálogos e nem qualquer explicação oral ou escrita de complemento à narrativa, há apenas caracteres em japonês por cima de uma imagem de transição que indicam as mudanças nas estações climáticas, e só.

Realço a importância fundamental dos sons: som de água caindo sobre água quando enchem os baldes no continente para levá-los à ilha, barulho de água na terra ao irrigarem o solo, som da chuva caindo, do remo do barco na água para movimentá-lo, de motores de barcos deslizando no rio, só para citar os que envolvem água. A música é outro elemento fundamental e tem papel significativo como componente dramático; é clara a mudança de tom e de ritmo quando um dos meninos adoece gravemente, para citar um só exemplo. A música, em certos momentos, tem a função de manter a continuidade ao permanecer a mesma em mudança de cenas. O cântico das crianças da escola e em uma representação popular com dança, uma manifestação de cultura do povo, são intercalados á vida da família que também faz um passeio de barco motorizado e anda na cidade para comercializar seus produtos e também para passear. Quando olham a imagem de uma mulher na televisão em movimentos corporais rítmicos, indica-se a brutal diferença e oposição à vida que levavam.

A tarefa de buscar água no continente, transportá-la no barco deles mesmos, a subida no morro da ilha com os baldes e a irrigação das culturas são recorrentes e tem a função de reforçar o estilo de vida da família, a disciplina necessária à sobrevivência, o trabalho árduo. A importância dessa atividade é demonstrada quando a mulher deixa cair um balde e a água nele contido é derramada; o homem aproxima-se dela e, em vez de ajudá-la logo, primeiro a esbofeteia; ela cai e só depois, sim, ele vai ajudá-la; ela, conformada, volta à tarefa e os dois carregam juntos o outro balde.

Há época de semear, de colher, de comercializar. A ilha, mostrada isolada próximo ou em panoramas abrangendo o rio e o céu, em belos planos gerais ou como pano de fundo das travessias de barco, é o ponto de referência de dia ou de noite.

O ritmo do filme se altera quando um dos meninos adoece. A mudança de tom e de cadência da música de fundo já registrados é o primeiro indicativo da tragédia que se aproxima quando o outro garoto entra e sai da modesta casa na ilha e olha para o mar, os pais estão vindo no barco, ainda longe. O menino faz giros com o braço direito para os pais observarem; os dois percebem que algo de ruim está acontecendo; o homem acelera os movimentos com o remo, estão tensos. Constatada a doença, o homem vai para o continente em busca de auxílio. A calma com que ele executava as tarefas se transforma em pressa, agonia, o ritmo do filme é acelerado. O médico é levado à ilha tarde demais, o menino está morto. À noite, um contraste: a mulher olha em direção ao continente, nos céus explodem fogos de artifício, mas seu filho está morto.

No enterro chegam do continente, de barco, os colegas de escola e a professora do menino. Há um cortejo fúnebre. A cerimônia é simples: um pequeno caixão de madeira, uma cova no terreno, um religioso que viera com o grupo faz orações, buquês de flores são atirados sobre o caixão na cova; a mãe volta correndo a casa, pega uma espada que estava pendurada na parede, volta à cova, e coloca a espada em cima do pequeno caixão; todos colocam pedaços de madeira sobre a cova; tudo feito com belas imagens; os visitantes voltam ao continente; um plano distante destaca o morro da ilha onde está a cova do menino de onde sai fumaça: o corpo está sendo cremado. Depois os pais retornam e, com pás, jogam terra sobre a cova; o outro filho observa. Um rápido plano mostra uma haste vertical sobre o túmulo com inscrições e flores no chão, indicando que se passou algum tempo. Perdoem esta pobre descrição, é apenas uma referência, a bela composição feita por Kaneto Shindo é de uma beleza indescritível por palavras; vejam o filme.

Voltam ao trabalho, estão irrigando o terreno. A mulher para, atira um dos baldes d’água no chão, arranca plantas com as mãos, joga-se no solo em desespero, chora, grita. O homem a olha com tristeza. Pela atitude anterior quando a mulher derramara um balde e fora esbofeteada poderia se esperar um comportamento violento semelhante do homem, mas a expressão dele é de quietude. Ele retoma a irrigação, a mulher se recompõe e também volta a irrigar as plantas.

Vista da ilha, do mar, a câmera balança como se estivesse em um barco. Passa-se para um plano geral: o mar, montes, o céu iluminado por um sol poente, nuvens brilham, em partes estão escuras, um barco desliza ao longe.

Foco no mar, no barco, o casal retoma a rotina, ele vai ao leme-remo impulsionando a canoa. A música reforça a quietude, calmaria. A mulher se levanta, estão chegando à ilha, joga a âncora na água. Os dois sobem o morro carregando, cada um, dois baldes suspensos por cordas nas extremidades de uma vara que eles apóiam nos ombros. Música de fundo com vozes de um côro. Eles continuam subindo, com cuidado para não caírem e nem derrubarem os baldes com a preciosa água. Eles subindo, agora o céu ao fundo. Chegam onde há pequenas plantas crescendo, arriam os baldes maiores que carregavam cheios de água, pegam baldes pequenos com hastes, cada um com um balde e os mergulham na água; voltam a irrigar o solo. Fisionomias apáticas e sofridas, conformadas, a água penetra no terreno seco, a música é forte. A câmera passa a focar de cima, afasta-se do terreno, mostra os dois na ilha, bem do alto, o terreno tem vários níveis de curvas plantadas. A câmera continua se afastando, subindo, até que toda a ilha aparece, o mar em volta. A tela escurece.

Kaneto Shindo em “A Ilha Nua” conta uma história com início, meio e fim, por sinal muito bem narrada em imagens sem diálogos ou explicações verbais. Os momentos de vida da família que mora na ilha, na verdade são os únicos habitantes nela, são a base para uma obra que vai muito além de uma experiência de trabalhar o poder expressivo da imagem cinematográfica com a associação da música, de sons da natureza e barulhos das atividades humanas, deixando de lado as palavras. Na verdade, o filme é tão bem construído que não se sente falta de explicações adicionais, escritas ou faladas.

Tanto o ritmo de vida dos personagens como o realce que lhe é dado com a repetição meticulosa e funcional de suas atividades diárias são elementos definidores de uma intenção especulativa sutilmente inserida numa primorosa composição artística.

Ao mesmo tempo em que é criativo Shindo é também sistemático e objetivo, às vezes deixa a narrativa para documentar, na busca de um sentido para a vida. Ao expor uma situação humana de quase isolamento não significa que ele a defenda ou indique qualquer alternativa, ele deixa a análise para o espectador, até se for ocaso, comparando com a própria vida. O que foi despertado em mim, primeiramente, foi a sensibilidade estética e, ao término do filme, uma valorização da vida e a necessidade de nunca desistir: aconteça o que acontecer, não se desespere, a vida deve continuar. A dimensão dessa mensagem foi captada por mim quando assisti pela primeira vez “A Ilha Nua”, em 1971 ou 72, quando realizava o mestrado na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Àquela altura tive que redobrar meus esforços para concluir o curso e quando assisti ao filme foi como se algo mais despertasse em mim tanto que até hoje permanece essa impressão e que ficou reforçada após revê-lo.