sexta-feira, 19 de março de 2010

“O Incrível Homem que Encolheu”, a Teoria Quântica, a Nanotecnologia, a Origem do Universo e personagens de histórias em quadrinhos

Após assistir ao filme O Incrível Homem que Encolheu (The Incredible Shrinking Man, EUA, 1957) na sessão Cult do dia 20 de fevereiro de 2010 no Cine Líbero Luxardo, programação da Associação de Críticos de Cinema do Pará (ACCPA), três associações à história de Robert Scott Carey vieram-me à mente: à teoria quântica, à nanotecnologia e à origem do universo. Minha pretensão, no momento, era inserir em um comentário geral sobre o filme, referências sobre essa teoria, sobre a nanotecnologia e sobre o “Big Bang”, a grande explosão que teria criado o universo há cerca de 14 bilhões de anos. No entanto, ao ler a reportagem “O mundo invisível da nanotecnologia” (MONTEIRO, fev. 2010), decidi escrever este texto, mais específico do que um comentário geral sobre o filme. Mais uma das minhas “viagens” que o cinema me proporciona.

Primeiro vamos ao filme. Depois de ter sido exposto a uma estranha nuvem de origem desconhecida cujas partículas interagiram no sistema corporal com partículas de inseticida provenientes de uma pulverização à qual se expôs, também casualmente, Scott Carey começou a encolher, a diminuir de tamanho. Após inúmeros exames e testes, médicos estabeleceram o diagnóstico: uma reorganização da estrutura molecular das células invertendo o processo de crescimento. Chega-se a descobrir um antídoto que estaciona o processo de encolhimento, mas só por algum tempo. Scott volta a sofrer diminuição de tamanho e vai encolhendo inexoravelmente. Ele mesmo explica o que acontece: “Continuava encolhendo, me transformando em...Em quê? Em algo infinitesimal? O que eu era? Ainda era um ser humano? Ou era o homem do futuro?[...]”

Entre as especulações feitas por ele há uma associação aparentemente incompreensível:

Tão perto, o infinitesimal e o infinito. Mas de repente soube que eram os dois extremos de um mesmo conceito. O incrivelmente pequeno e o vasto acabam se encontrando como se um grande círculo se fechasse [...]. Como se de algum modo pudesse compreender o céu, o universo, mundos infinitos. A tapeçaria prateada de Deus que cobre a noite”.

O que me lembrei da teoria quântica no final do filme diz respeito à decomposição da matéria em um grupo de partículas e que as partículas subatômicas têm características tanto de partículas como de ondas e que havia um modelo para explicar, ao mesmo tempo, o infinitamente pequeno e o enorme; isto em palavras simples. Para escrever este texto consultei Kaku (2001, p. 22) para confirmar essa primeira ideia e ainda que “a energia não é contínua, como pensavam os antigos, mas ocorre em pacotes discretos, chamados quanta”. Ficando cada vez menor e com referências às próprias especulações de Scott, transcrevo um pequeno trecho do mesmo Kaku: “O auge da teoria quântica é o Modelo Padrão, que pode prever as propriedades de todas as coisas, de minúsculos quarks [componentes dos prótons] subatômicos a supernovas gigantes no espaço cósmico” (ibidem). Scott vai além do infinitesimal: “Senti meu corpo encolhendo, fundindo-se, transformando-se em nada”. O que é o nada? O que existia antes da criação do universo?

E, por que associei o filme à nanotecnologia? Bem, porque a nanotecnologia é um ramo da ciência que trabalha com objetos do tamanho de nanômetros (10-9 metros) e como Scott estava diminuindo na perspectiva de chegar a nada, fantasiei mais essa associação.

Em artigo publicado na Folha de S. Paulo, Gleiser (14 ago. 2005) faz o leitor imaginar máquinas milhares de vezes menores que um marca-passo, que um i-pod, um aparelho de audição “com tamanho comparável ao de bactérias. Sabemos que células são máquinas extremamente sofisticadas, movidas pela dança das proteínas”. Gleiser argumenta: já que

a natureza pode criar máquinas tão pequenas, porque não os homens? São as máquinas quânticas, objetos de porte comparável ao de células ou até menores, nos limites entre os mundos da física clássica e da física quântica, que descreve o comportamento dos átomos e das moléculas.

Quando Scott fala do incrivelmente pequeno, do vasto, do universo, de mundos infinitos, veio a associação à origem do universo e ao Grande Colisor de Hádrons (Large Hadron Collider – LHC), uma gigantesca máquina construída para simular o ambiente, as condições existentes no início do Big Bang, para desvendar os segredos da matéria, o que dá massa à matéria. (GRANDE..., 4 jun. 2009, MÁQUINA..., 01 mar. 2007).

Hádron é uma subpartícula da matéria. Nos átomos existem elétrons na parte externa e, lá no meio, o núcleo que contém a parte de maior massa. A palavra hádron significa “aquele que interage fortemente”. Enquanto os elétrons ficam estáveis em torno do átomo por causa de forças elétricas, os prótons e nêutrons dentro do núcleo são mantidos por forças mais fortes, chamadas nucleares. Portanto prótons e nêutrons são hádrons estáveis. Os hádrons instáveis são semelhantes, mas eles não são encontrados na matéria tranqüila, estável: só são produzidos quando se faz uma colisão de alta velocidade. Depois decaem e se desintegram (FERREIRA, 14 ago. 2009)

O LHC, o maior acelerador de partículas do mundo, começou a funcionar no dia 10 de setembro de 2008, na fronteira da Suíça com a França, mas apresentou problemas logo no dia 19 de setembro e parou de operar. Voltou a funcionar somente no dia 20 de novembro de 2009. O custo declarado do LHC é de 3 bilhões de euros, mas há indicações de 9,4 bilhões de dólares e há quem fale que os gastos atingem 10 bilhões de euros. Há milhares de físicos, engenheiros e técnicos envolvidos no projeto.

As experiências do LHC podem criar buracos negros e essa possibilidade gerou questionamentos de que isto poderia acabar com a Terra já que os buracos negros puxam para dentro de si, capturam, sugam a matéria. Por esse motivo o Grande Colisor de Hádrons chegou a ser apelidado de “Máquina do Fim do Mundo” e os cientistas que trabalham no projeto foram acusados de estarem “Brincando de Deus”. Celebridades científicas negam veementemente essa possibilidade apocalíptica.

Entre os possíveis resultados das experiências do LHC está a confirmação da existência do bóson de Higgs, descoberto por dedução em 1964 por Peter Higgs. Se confirmada sua existência “permitiria explicar a origem da massa e a razão pela qual algumas partículas estão curiosamente desprovidas dela. Esta partícula instável, que tem sido chamada de “divina” porque muitos cientistas a estudam sem ter demonstrado sua existência, guia há décadas o mundo da física das partículas” (CIENTISTA..., 11 set. 2008).

A ciência tenta responder como surgiu o Universo, explicar a sua origem, mas não tem como função responder por que o Universo foi criado. Queiramos ou não, gostemos ou não, até o momento só se pode tentar buscar essa resposta na religião.

Um caso de encolhimento, nas histórias em quadrinhos e que me veio à mente agora, de grandes proporções na fantasia, é o caso da cidade de Kandor, de Krypton, relembrado em reedição de uma história de fevereiro de 1964 (HAMILTON et al., 2008).

Brainiac, um computador do mal com forma humana, construído por computadores, e que se tornou um dos maiores inimigos do Super-Homem, ao sobrevoar o planeta Krypton antes da destruição, projeta raios de sua nave reduzindo a cidade de Kandor para ser levada dentro de uma garrafa (p. 79) aos computadores-governantes que dominaram um distante planeta; Brainiac era espião deles. Os computadores pretendiam dominar todos os planetas governados por humanos (p. 77).

Na verdade, os computadores haviam sido construídos por humanóides, porém eles se revoltaram contra os criadores: “Nós, computadores construídos para servi-los, somos mais aptos a governar do que suas limitadas mentes de sexto grau! Doravante, nós estamos no poder!” (p. 77). Certamente esta situação implica em outro tipo de análise, que não será feita agora, estamos falando de encolhimento.

Na história, em dado momento, Super-Homem, tornado vulnerável pelo efeito de um gás inventado por Luthor, foi também encolhido pelo efeito de raios projetados pelo bandido com uma espécie de lanterna e é aprisionado em uma gaiola para pássaros; ao tentar escapar, Super-Homem é atingido por um raio de coma lançado de um anel de Brainiac.

Na batalha final de Super-Homem versus Luthor & Brainiac quem resolve são os homenzinhos de Kandor que saem da garrafa com uniformes semelhantes ao do Super-Homem, atacam e encolhem os bandidos com os raios da lanterna de Luthor, levam-nos para a garrafa junto com Super-Homem, são julgados, condenados, mas negociam suas libertações em troca da retirada de Super-Homem do coma. E o final? Bem, deixo para os leitores da revista, bem como toda a trama da história.

Um personagem minúsculo e poderoso, o Eléktron, teve sua origem nas histórias em quadrinhos contada em 1961 (FOX; KANE; ANDERSON, set.-out. 1961, 1975). Na Universidade de Ivy, na Califórnia, o físico Ray Palmer fazia experiências diminuindo objetos, comprimindo a matéria, sem que perdessem suas propriedades físicas e químicas. Ele viu um meteorito cair na Terra e foi ao local da queda tendo encontrado fragmentos que seriam de uma estrela anã branca. “Essas estrelas são muito densas porque são formadas de matéria em degenerescência...matéria cujos elétrons, atingidos, a comprimiram!”. Com o material ele fez lentes redutoras. Realizando experiências em seu laboratório verificou que, quando as lentes eram atravessadas por raios ultravioletas, os objetos inanimados atingidos pela radiação resultante encolhiam. No entanto, os objetos encolhidos explodiam. Ray Palmer continuava com as pesquisas na tentativa de evitar as explosões e fazer com que os objetos voltassem a seus tamanhos normais (FOX et al., 1975).

Em um determinado dia, Palmer e sua namorada, Jean Loring, vão a um passeio do Clube dos Naturalistas com um grupo de meninos e meninas e entram em uma caverna para conhecerem o ambiente e aproveitarem para recolher amostras de rochas. Inesperadamente, um desmoronamento bloqueia a caverna. Palmer vai à procura de uma saída, deixando os garotos com a namorada. Ele vislumbra um fio de esperança, no alto da caverna: “A única abertura que encontrei foi aquele buraquinho lá em cima...mas apenas uma formiguinha passaria por ele!! Isso me dá uma idéia louca...”.(FOX et al., 1975).

Providencialmente ele estava com as lentes redutoras e as ajusta nas rochas da caverna de tal modo que os raios ultravioletas, ao passarem por elas, atinjam seu corpo. Um anel com um diamante solitário que ele usava é posto fora do alcance dos raios, ele pensa usá-lo em seguida. Ele se posiciona de tal modo que, quando os raios do Sol atravessam as lentes, é atingido pelo feixe que passa por elas. Vejamos o que ele pensa nesse momento: “Está funcionando! Posso sentir a energia percorrendo meu corpo...diminuindo meu tamanho!” (FOX et al., 1975).

O minúsculo Ray Palmer enfia o anel no braço, escala as paredes da caverna e, pasmem, com o diamante do anel corta a rocha aumentando a abertura no teto da caverna para que permita a passagem de uma pessoa de tamanho normal. Sabendo que pode explodir a qualquer momento, corre para avisar Jean e passa novamente pelo feixe de raios: “De repente, ondas de choque atinge-lhe o corpo ...e Ray Palmer começa a crescer...Torna-se como que um gigante”. Ele se espanta: “Céus, Estou voltando ao normal! Não há perigo de explosão! Mas como...”. Ray analisa as lentes, verifica que estão molhadas, pingos caídos do teto rochoso; avalia que algum elemento químico dissolvido na água permitiu que ele voltasse ao normal. Ele volta ao grupo, diz que achou uma saída sem contar o que aconteceu e todos saem da caverna (ibidem).

De volta às experiências no laboratório com água tratada quimicamente, as explosões dos objetos continuam. A história termina com Ray Palmer gravando suas impressões:

Só posso chegar a uma conclusão: há forças misteriosas e desconhecidas em meu próprio corpo, capazes de garantir minha volta ao estado normal! Com experiências posteriores, poderei solucionar esse problema! (ibidem)

No último quadrinho da história ele conclui: “Agora que posso me tornar um átomo humano, quem sabe que coisas estranhas e maravilhosas podem acontecer?” (ibidem).

Ray Palmer vestiu uma fantasia e tornou-se um super-heroi.

Lembrei-me, agora, de mais casos de personagens minúsculos no cinema, nos quadrinhos e na literatura. Bem, é bom parar por aqui...

Referências

CIENTISTA busca a “partícula de Deus”. O Liberal, Belém/PA, 11 set. 2008, Atualidades, p. 17, Mundo, France Press.

FERREIRA, Erasmo Madureira. In: Acelerador de partículas é o fim do mundo? Info Online, 14 ago. 2009. Disponível em: http://info.abril.com.br/noticias/ciencia/acelerador-....Acesso em: 24 nov. 2009.

FOX, Gardner; KANE, Gil; ANDERSON, Murphy. Eléktron. In: Lançamento nº 2, 3ª série, Origens dos Heróis, p. 16-25. Rio de Janeiro: EBAL, 1975.

GLEISER, Marcelo. Máquinas quânticas. Folha de S. Paulo/São Paulo, 14 ago. 2005, caderno mais!, p. 9.

GRANDE Colisor de Hádrons. Disponível em http://pt.wikipedia.org/..., 4 jun. 2009. Acesso em: 10 jun. 2009.

HAMILTON, Edmond; BATES, Cary; SWAN, Curt; KLEIN, George. A aliança Luthor/Brainiac. In: Superman 70 anos, 1 de 4. Barueri/SP: Panini, 2008, p. 71-96.

KAKU, Michio. Visões do futuro: como a ciência revolucionará o século XXI. Rio de Janeiro: Rocco, 2001. Título original: VISIONS How Science Will Revolutionize the 21st Century, 1997.

MÁQUINA sondará segredos do Universo. O Liberal, Belém/PA, 01 mar. 2007, Poder, p.12.

MONTEIRO, Glauce. O mundo invisível da nanotecnologia. Beira do Rio/UFPA, fev. 2010, p. 6-7.

quinta-feira, 4 de março de 2010

DUBLAGEM É O ASSUNTO

No início da década de 1960, tramitava no senado brasileiro um projeto que, se aprovado, obrigava a dublagem de todo filme estrangeiro que entrasse no país. Entre os argumentos do parlamentar que apresentou o projeto alinhava-se a quantidade alta de analfabetos no Brasil que seria beneficiada já que o filme legendado estava inacessível a essa grande parcela da população. Por trás desse argumento, por si só estranho e inadequado para justificar uma mudança de tal monta, possivelmente existiam interesses comerciais e de classe.

Edwaldo Martins, jornalista paraense e um apaixonado por cinema, promoveu uma enquete sobre o tema e apresentou o resultado, opiniões de várias pessoas, no jornal “A Província do Pará” , de domingo, 12 de fevereiro de 1961, na página 2 do segundo caderno, página essa totalmente dedicada à Sétima Arte. O título, na parte superior, ocupava as oito colunas da página:


DUBLAGEM É O ASSUNTO


Edwaldo começou a apresentação da reportagem escrevendo:


HÁ MUITO que venho comentando e combatendo nestas colunas o hoje célebre caso das dublagens, ou melhor, o “Projeto Lindgreen”, que visa a obrigatoriedade da dublagem de toda e qualquer película estrangeira entrada no país. Como já esclareci por diversas vezes seria este um dos maiores absurdos – senão o maior – já realizados nesta terra de absurdos. Inconcebível, sob todos os aspectos, este projeto vem sendo combatido pela maioria dos que entendem e admiram o Cinema como realmente o é, a Sétima Arte.


O Edwaldo Martins prossegue citando intelectuais e artistas que já se manifestaram contra a dublagem e avança criticando possíveis grupos que poderiam beneficiar-se com a aprovação do projeto. Ele é incisivo na crítica ao senador que “devia era se preocupar com tantos males que atormentam esta terra [...]”, citando como exemplo a necessidade de criação de novas escolas. Edwaldo questiona a capacidade de atores “[...] contribuírem com a sua voz para a dublagem de um Charles Chaplin, de um Lawrence Olivier, de um Orson Welles, de um Marlon Brando, de uma Giulietta Masina, de uma Katherine Hepburn, de uma Anna Magnani, de uma Marilyn Monroe e de vários outros expoentes máximos do cinema universal?”

Edwaldo conclui a apresentação explicando o conteúdo da reportagem:


Com o intuito de proporcionar aos meus leitores o pensamento dos críticos, intelectuais, jornalistas e exibidores de nossa terra a respeito desse “monstrengo” que é a dublagem, é que resolvi fazer uma “enquete”, colhendo a opinião de cada um. Mostraram que são pessoas realmente mentalizadas e entendidas (o oposto do criador do tal projeto): todos foram, são e serão sempre CONTRA a dublagem. Assim sendo, aqui estão, pois, ACYR CASTRO, ELÁDIO LOBATO, ORLANDO COSTA, CARLOS GOMES LOPES, ADALBERTO AUGUSTO AFFONSO, ELISTON ALTMANN, ROBERTO RODRIGUES, SÉRGIO PAULO DE MACEDO, ARNALDO PRADO JR. e ARIOSTO PONTES, opinando sobre o que acham desse crime que ora transita pelo Congresso. – E. M.


As manifestações dos entrevistados, como já registrou o Edwaldo, foram contrárias à adoção da dublagem havendo, no entanto, uma exceção para casos específicos. Roberto Rodrigues cita o exemplo de “um filme que assistira em Munique [...] ‘Maravilhas da Natureza’, um trabalho do genial Walt Disney, narrado em alemão. Esse está certo, pois uma vez que não tem diálogos, justifica-se a dublagem.[...].

Vou comentar alguns dos depoimentos, citando trechos que achei mais relevantes por enfocarem diretamente a obra cinematográfica. Houve entrevistados que, também, levantaram possíveis intenções não declaradas para a apresentação do projeto, a inexistência de competência no Brasil para realizar um trabalho de tal monta e que fizeram críticas diretas ao senador proponente.

Começo por Orlando Costa, apresentado na reportagem como intelectual e advogado. Na verdade, ele foi um dos fundadores do cineclube “Os Espectadores”, na década de 1950. Esse cineclube teve uma importância fundamental na apresentação e divulgação do cinema como arte. Na antiga sede da Sociedade Artística Internacional (SAI), em Belém, na Rua João Diogo, nº 235 foram exibidas obras marcantes da cinematografia mundial. Após cada projeção, havia análises, críticas e debates coordenados por intelectuais da terra, em geral associados do cineclube. As sessões eram muito concorridas e marcaram significativamente aquele período na cidade com pessoas ávidas de conhecerem grandes realizações de grandes realizadores. Foi nessas sessões que aprendi muito sobre cinema; era o período no qual eu lia muito sobre a Sétima Arte e nada melhor para ampliar e complementar conhecimento apreciando filmes importantes, muitos deles citados nos livros que lia, e mais, avaliados nos debates por pessoas de reconhecido mérito intelectual e artístico.

O depoimento de Orlando Costa sobre a dublagem inicia-se com o registro de que não era a primeira vez que se falava, no Brasil, no emprego da dublagem. Ele cita experiências anteriores, exemplificando com o filme argentino “A Marquesa de Santos” e também desenhos animados de longa metragem de Walt Disney, opinando que nesses casos não houve reações pois “os filmes dublados não possuíam nenhuma qualidade capaz de ficar prejudicada com o uso dessa técnica”. Ele continua:


Agora, porém, que se fala em generalizar o emprego desse processo, creio que se faz necessário orientar a opinião pública, a fim de que possa estar no conhecimento dos prejuízos irremediáveis que serão causados aos filmes, mormente aos grandes filmes, com a sua utilização.


Em vez de tentar resumir outra parte do depoimento, volto à palavra ao professor de cinema Orlando Costa:


A essência da estética cinematográfica reside na mobilidade das imagens combinadas com o uso acertado do som. Falar em som, implica em dizer ruídos, diálogos e música. Ora, quando o realizador concebe o som para o filme, passa ele a integrar as características da obra. Qualquer alteração nele implica em mudar a própria obra original. O processo de dublagem consiste na substituição dos diálogos gravados na língua do país de origem do filme, por diálogos gravados na língua do país onde o filme será exibido. Consiste, pois, numa alteração substancial do elemento som, o que implica em dizer, que importa numa deturpação do conceito original do filme.


Em seguida, Orlando Costa exemplifica com Marlon Brando, ator de “Sindicato de Ladrões” e “Uma Rua Chamada Pecado” sendo dublado por uma voz desconhecida, considerando essa uma situação lamentável:


Quando se aprecia a interpretação de Marlon Brando, se aprecia no seu todo e desse todo faz parte a sua voz. Se essa voz for substituída, assistiremos apenas metade da interpretação. A outra metade, quiçá a mais importante, terá sido substituída por uma voz desconhecida.


Em seguida ele cita o gênero musical, quando a voz do ator que canta “[...] não pode ser substituída sob pena de não se estar ouvindo o artista que se aprecia em discos, digamos Frank Sinatra [...]”. Orlando Costa avança levantando a possibilidade de não se dublar a canção, “ apenas os diálogos e teremos como resultado uma interpretação a duas vozes: uma para as canções – a original de Sinatra e outra para os diálogos – a de um mocinho de rádio-novela”.

Orlando Costa considera os exemplos que apresentou como grosseiros, mas que “demonstram o quanto perderão, com a dublagem, os filmes a serem exibidos no Brasil”. Ele continua:


Para os aficionados, imaginamos ainda outro exemplo: “Pigmalião”, a peça de Shaw que foi levada à tela. Já pensaram nos diálogos desse filme, fundamentais quanto ao modo pelo qual foram ditos, sendo substituídos pela voz de um medíocre rádio-ator?


Orlando Costa encerra a entrevista comentando que ele ainda poderia tecer muitas considerações sobre o assunto, mas a exigüidade de tempo priva-o de fazer e que talvez em outra oportunidade volte ao assunto.


Eliston Altmann, intelectual, diretor da “Página Artística” de “A Folha do Norte”, começa o depoimento sobre a dublagem como segue:


Qualquer pessoa que considere o Cinema como expressão sintética de diferentes formas de arte não poderá aceitar a idéia de introduzir a dublagem nas películas estrangeira exibidas entre nós.


Em seguida ele especula sobre o possível interesse de proprietários de grandes empresas por trás do projeto, alegando que estão “empenhadas em aumentar ainda mais seus lucros fabulosos em detrimento da mensagem artística e didática que trazem esses filmes por piores que sejam [...]”. Altmann também faz restrições às legendas:


Mesmo sabendo que as versões das legendas que nos são impostas pertencem na maioria das vezes, a tradutores improvisados, lançados por editores menos avisados e inescrupulosos, preferimos que tudo continue como está a ouvirmos as vozes incultas dos atores de TV e emissoras do sul do país sobre sobreposta, violentamente, aos rostos de Giulietta Masina, Audrey Hepburn, Sir Lawrence Olivier ou Orson Welles, que, por sua vez, nos oferecem interpretações convincentes, em flagrante dissonância com os “locutores”.


Altmann faz, ainda, carga sobre as pessoas que não entendem de cinema, concluindo ser contra a dublagem e encerra dizendo que “[...] temos certeza, este é o ponto de vista da quase totalidade dos que se interessam por cinema neste país”.


Adalberto Augusto Affonso, exibidor, gerente da Empresa de Cinemas São Luiz Ltda. Mostra que:


O sentido da beleza da arte cinematográfica nas suas variadas expressões, desde o conjunto das imagens, da direção, da montagem, da interpretação, completou-se com o advento do som. E este trouxe ao cinema o que lhe faltava na sua manifestação final e decisiva: a voz dos artistas.



Logo em seguida ele avança sobre o valor da voz do artista: “Como aceitar agora a mudança dessas vozes, às quais já nos habituamos, e muitas delas até com inflexões inconfundíveis e perfeitamente identificáveis? ..,.” Affonso é veemente: “ Não! A dublagem é um atentado à seriedade e à honestidade do cinema que não pode se consumar”. E conclui considerando não acreditar na sinceridade dos que pretendem implantar a dublagem no país, e mais: “O autor desse projeto deve ser um inimigo do cinema querendo ridicularizá-lo”.


Acyr Castro, crítico de “A Folha Vespertina” e da Página Artística de “A Folha do Norte” – Equipe Gestalt, começa seu depoimento falando sobre a maneira anárquica com que se está conduzindo o debate sobre o projeto da dublagem considerando que Edwaldo Martins, em boa hora, estendeu-o ao nosso Estado, organizadamente, nos jornais em que escreve. Acyr sintetiza sua manifestação:


Resumo toda a minha argumentação numa pergunta que responde à premissa (“é a favor do cinema brasileiro”) dos adeptos do esdrúxulo projeto: onde o interesse nacional nisso tudo? Em que será beneficiado o produto indígena com a deturpação e a morte do produto de fora? Morte e deturpação da Arte, a propositura, além de errada do princípio ao fim, e ridícula no seu arrazoado de pseudo “nacionalismo”, esconde escusos objetivos – os de proteger meia dúzia de picaretas e canastrões do rádio, do teatro e da televisão.


Termino esta síntese com o meu depoimento, Arnaldo Prado Jr., crítico de “O Liberal”. Fiz uma rápida introdução à questão e em seguida entrei minha resposta nos reflexos no filme em si:


Antes de outra coisa, o filme é o resultado de um trabalho de equipe e o bom diretor (como bom artista) deve unificar todos os elementos disponíveis para a realização de um conjunto homogêneo e estético. Ora, a voz do ator é um elemento de grande significação e que está diretamente ligada à capacidade de interpretação do artista e às ponderações e correções de um diretor consciencioso. Como então, introduzir outra voz à imagem (expressões fisionômicas de um ator, voz de outro) sem as disciplinações do dialoguista e do diretor do filme, não prejudicando o valor artístico da realização? Surgiria então a equipe de dublagem e dela quanta coisa se pode antecipar!

Por esse e muitos outros argumentos a dublagem deve ser combatida.


Embora não tenha comentado todas as manifestações dos entrevistados, julgo que captei os pontos relevantes em relação ao tema naquele momento. De 1961 para 2010 algumas alternativas foram adicionadas à construção do filme referentes, sobretudo, às novas tecnologias e que de algum modo influenciam a produção final. No entanto, em essência, a dublagem continua alterando a obra.