sábado, 26 de março de 2011

O SEGUNDO ROSTO

Minha primeira manifestação durante o debate, após a exibição de "O Segundo Rosto" (Seconds, EUA, 1966) na sessão Cult do Cine Líbero Luxardo de 12 de março de 2011 foi considerar a última sequência como de horror, com o terror pânico do personagem Antiochus ‘Tony’ Wilson (Rock Hudson) atingindo o espectador com a platéia atenta e em silêncio. Dirigido por John Frankenheimer, com roteiro de Lewis John Carlino baseado na novela de David Ely, o filme conta uma estranha história na qual o banqueiro Arthur Hamilton (John Randolph) tem a morte simulada por uma empresa que, também, se encarrega de renascê-lo realizando uma radical operação cirúrgica nele, que transforma totalmente seu aspecto físico além de dar-lhe a identidade de um artista, o pintor Antiochus ‘Tony’ Wilson, um renascimento desejado por Hamilton que não estava satisfeito com a vida que tinha, apesar do sucesso profissional alcançado por ele.
Com a nova configuração física Arthur/Tony vai passar por um processo de adaptação monitorado pela firma. É levado a novas experiências de vida acompanhado por Nora Marcus (Salome Jeus); ele pensa tê-la encontrado casualmente, mas depois sofre a frustração de saber que ela era empregada da empresa. Tony é envolvido por Nora que o leva a uma festa ao ar livre que tem o ponto culminante quando participantes do evento ficam nus, mulheres e homens, e entram em um enorme tonel para amassar uvas. Mais de uma dezena de pessoas se comprimem no recipiente, pisando nas uvas, caindo, esfregando-se umas nas outras por causa do exíguo espaço para tanta gente; estão alegres, riem totalmente descontraídas, soltas. É um momento crucial para Tony que, inicialmente, reage, não quer participar, mas é despido sob protestos seus e jogado no tonel; todos fazem festa, menos ele. Mas, da reação passa à aceitação e participação ativa no esmagamento das uvas, acaba integrando-se prazerosamente ao grupo. Parece um momento de libertação para ele.
Depois, sempre acompanhado por Nora, participa de uma festa, também organizada pela firma. É uma reunião social sofisticada, com participantes estranhos, na verdade são pessoas renascidas como ele, de comportamentos forçados. Tony bebe em excesso, até cair.
Após a ressaca ele consegue escapar do controle e volta à sua antiga residência para conversar com sua mulher Emily (Frances Reid) sem que ela saiba quem é ele; ele se diz amigo de Arthur. Enorme frustração. O perfil que ela faz do marido e da convivência que tivera com ele são decepcionantes.
Ele volta à firma, pretendendo um novo renascimento para que, então sim, ele possa reconstruir a vida sob controle próprio, ele mesmo tomando as decisões sem influência dos outros. No entanto, para que a firma aceite repetir o processo é preciso que Tony consiga um novo cliente candidato a renascimento, afinal a firma é uma empresa de negócios. Na verdade, ele próprio fora convencido a participar do renascimento por um velho amigo muito próximo, Charlie Evans (Murray Hamilton), dado como morto, ou seja, que já tinha passado pelo renascimento.
Como Tony não consegue tal candidato a firma o coloca na fase dois do processo: de candidato ao renascimento ele passa a ser candidato a cadáver. Claro, para cada simulação de morte de um cliente a empresa precisa de um cadáver para se passar pelo candidato ao renascimento. Ele é colocado em uma maca, pensa que vai passar por uma nova transformação física, uma nova operação cirúrgica, mas quando entende seu novo destino é tarde demais, pois ele está firmemente preso na maca, não pode escapar. O terror pânico pelo qual ele passa nesses momentos faz a platéia ficar em silêncio, é uma cena de horror.
Terminada a exibição, estabeleci mentalmente uma classificação para o filme: ficção científica e horror, com uma clara mensagem aberta a diversas interpretações. A mensagem: pessoas vivem insatisfeitas com suas vidas atuais apesar de bem posicionadas em suas atividades profissionais e buscam modificá-las, chegando a imaginar uma mudança radical; na novela de David Ely é incluída a mudança física radical.
Vi no filme um relato muito bem feito de uma experiência inusitada de transformação mal sucedida e que, a partir de uma nova transformação, apesar da experiência acumulada na primeira, uma nova tentativa também não daria certo. Na verdade, todos os renascidos, de fato, mais cedo ou mais tarde, seriam levados à segunda fase da experiência: ser cadáver.
Durante o debate houve uma manifestação, segundo entendi, mas não sei se foi isso mesmo, que considerava a segunda tentativa de renascimento com garantia de sucesso, pois Arthur/Tony, então, decidiria por si mesmo, estaria no comando de suas ações sem influência de outros, nem da firma. Claro que isto não seria possível, pois a presença da firma, por si só, exigiria controle externo. Mais uma triste ilusão no nível de entendimento do personagem; e não porque tal controle pessoal não seja possível. É possível, sim, mas com a mudança de referências e parâmetros de felicidade definidos por uma sociedade baseada no consumismo em bases materiais. Não falo aqui em religião, é outro plano, mas no plano puramente psicológico. Aliás, em relação à religião os autores são cínicos, ao apresentarem o religioso que vai acompanhar Arthur/Tony nos últimos momentos de vida. Ele pergunta qual a atual religião do condenado, mas se antecipa dizendo que está preparado para consolá-lo em qualquer religião, observação feita cinicamente.
Para concluir com menos especulação e mais objetividade, considero O Segundo Rosto um excelente filme. Frankenheimer, Carlino e Ely construíram uma ficção científica trágica significativamente pertinente em relação às insatisfações humanas, aos sonhos e delírios que nos acompanham. A funcionalidade com que são aplicados os recursos da linguagem cinematográfica, incluindo a mobilidade de câmera e os enquadramentos em grandes planos, deram à narrativa um clima adequado a uma história de ficção científica e de mistério, à qual os atores se integraram como elementos plausíveis e essenciais com interpretações convincentes. Destaque para John Randolph que viveu o personagem central como banqueiro e para Rock Hudson que o interpretou como artista, como pintor. O filme merece mais do que tem conseguido.

sábado, 12 de março de 2011

Um Dia Muito Especial

A parceria da ACCPA com o Sesc Boulevard, em Belém, foi iniciada no dia 10 de março de 2011 com a exibição do filme "Um Dia Muito Especial" (Una Giornata Particolare, Itália, 1977), dirigido por Ettore Scola. É muito especial, primeiro, porque é o dia da visita de Adolf Hitler à Itália, o dirigente alemão sendo recebido pelo italiano Benito Mussolini com grande mobilização da população, que vai, em massa, às ruas para participar ativamente do evento. Esse é o pano de fundo, pois a história se passa longe das comemorações, em um prédio residencial de classe média. Enquanto o marido e os seis filhos do casal vão se juntar às manifestações populares, a mulher, Antonietta (Sophia Loren) fica no apartamento cuidando das coisas da casa. Inadvertidamente ela deixa aberta a gaiola de um pássaro falante, mascote da família, que escapa pela janela, indo se posicionar em um apartamento no lado oposto do edifício. Ela sai em busca da ave, entra no apartamento de Gabriele (Marcello Mastroianni) e, com a ajuda do vizinho, consegue capturar o animal fugitivo. Homem e mulher mutuamente se atraem e vão estabelecer um relacionamento muito especial em una giornata particulare; este é o segundo motivo, e o principal, de ser um dia muito especial.
Ambos excluídos, ela uma mulher conformada com uma situação de opressão familiar, se distrai colecionando recortes de Mussolini, ele um locutor de rádio que havia sido dispensado do trabalho por ser um antifascista. Na verdade, ele fora demitido por ser homossexual, opção que é logo conhecida pelo expectador por meio de uma conversa telefônica de Gabriele, mas que Antonietta só saberá em momento posterior, opção esclarecida pelo próprio Gabriele em momento de explosão e descontrole.
Um processo de descobrimento vai se processando, de desnudamento mútuo em uma construção cinematográfica bem estruturada, fluente, clara, sem maneirismos, uma bela narrativa seqüencial. A simplicidade formal a serviço da sensibilidade foi muito bem trabalhada por Ettore Scola com a contribuição decisiva de Marcello Mastroianni e Sophia Loren, além de bela, excelente intérprete.
A abertura do filme com a chegada de Hitler à Itália, a população mobilizada para participar do evento, os cadenciados e rígidos desfiles militares, e a vibração do povo, mostram a massificação das pessoas pelas ideologias nazista e fascista em oposição à individualidade que vai sendo retratada dentro dos apartamentos. São dois mundos que se opõem. De um lado os anestesiados e cegos pelo poder, de outro, duas pessoas que buscam dentro de si mesmas um significado para a existência. A constante presença dos relatos, no rádio, das manifestações políticas que se processam paralelamente nas ruas, sobre as ações de Antonietta e Gabriele são um contraponto de forte conteúdo emocional. O drama pessoal dos dois não tem nada a ver com o que se passa lá fora, mas é mais importante porque é humano e consequentemente universal. Fora é a ilusão do poder político e militar.
O desafio do cineasta foi estabelecer a comunicação e o entendimento entre duas pessoas aparentemente sem nada terem em comum, inclusive sendo ele letrado e ela praticamente inculta, pelo menos formalmente. Gabriele força um presente para Antonietta, o livro Os Três Mosqueteiros, de Alexandre Dumas, aliás, um romance instigante; de início ela despreza o livro.
Ações triviais, do dia-a-dia, no entanto, é que os aproxima: moer os grãos para fazer café, consertar uma luminária, escapar da maledicência de uma vizinha, pendurar roupas na corda, sendo que tudo começou com a fuga do pássaro. Paradoxalmente o tempo livre para Antonietta foi disponibilizado justamente por um marido opressor e admirador de Mussolini e de Hitler, ao levar todos os filhos para se unirem à população na recepção a Hitler. Deu tempo à mulher para encontrar Gabriele e se encontrar.
Primeiro a ilusão com Gabriele, um homem desejável, cordial, sensível, diferente do marido, um bruto. Depois o choque com a confissão desesperada de Gabriele. Tudo o que ela imaginara com ele desaba ao saber que ele é homossexual. E, finalmente, a compreensão, o entendimento, a aceitação, a comunicação, a eliminação da solidão. Certamente o marido não a terá mais, ela se nega a tentarem um sétimo filho; começa a ler Os Três Mosqueteiros. Ele vai ser extraditado, mas não irá mais se suicidar. A vida mudou para os dois. E Hitler e Mussolini, bem....Excelente filme de Ettore Scola.