segunda-feira, 4 de julho de 2011

Reencontrando a Felicidade

A perda de um filho de três anos de idade, atropelado por um carro quando corria atrás do cachorro da casa é uma tragédia inaceitável para Becca (Nicole Kidman), a mãe do menino. Haveria um culpado? O marido Howie (Aaron Eckhart) porque quiz ter o cachorro em casa contra a vontade dela? Ela que deixara o filho e foi fazer outra coisa? O rapaz atropelador Jason (Miles Teller) que excedera o limite de velocidade para o local? Se Deus queria uma alma, por que não criou uma já que é todo poderoso? Era inadmissível comparar a morte do filho com a do irmão dela Arthur, que morrera de overdose, aos 30 anos; Becca revoltava-se quando a mãe dela Nat (Dianne Wiest) fazia essa comparação.

Em casa o marido procurava preservar as lembranças do filho e ela tentava descartar-se de tudo que o lembrava. Uma vida insuportável de permanente revolta, nem pensar em ter outro filho. A vida do casal chegava ao limite do suportável. A freqüência a um grupo de auto-ajuda do qual participava por insistência do marido só servia para aumentar a revolta de Becca.

Resumidamente é esta a linha da história de Reencontrando a Felicidade (Rabbit Hole, EUA, 2010) com roteiro de David Lindsay-Abaire baseado na peça dele mesmo; o filme é dirigido por John Cameron Mitchell. O drama de Becca começa a tomar novo rumo quando ela avista, por acaso, em um ônibus escolar, um jovem que a espanta ao reconhecê-lo. Ela segue o veículo de carro até o momento em que o rapaz salta e se dirige a casa onde mora. Ela seguidamente segue o ônibus até que ele mesmo, que percebera o que ela fazia, a surpreende quando ela vê que ele não saltara do veículo. Ela e o jovem iniciam conversas cordiais, que se tornam amigáveis e até ternas. É nesse momento que a história passa a se encaminhar para o inusitado, o improvável: Jason é o atropelador do filho de Becca.

Cameron Mitchell e Lindsay-Abaire realizaram um filme que transita por sentimentos variados e contraditórios na complexidade das reações psicológicas diante de situações extremas a que é levado o ser humano quando a tragédia o atinge. A mente se descola da racionalidade e a total incompreensão leva à revolta e às vezes ao desespero com conseqüências desastrosas. A quebra do que se considera sequência normal dos fatos desestabiliza, desestrutura e a pessoa se torna reativa a tudo e a todos. Os mais próximos, em geral também envolvidos, são os mais atingidos. Os de fora nem conseguem se aproximar.

Mas a vida continua e é preciso reencontrar o caminho da normalidade. Essa volta não se consegue puramente apelando-se para a lógica construída pelo ser humano, é preciso usar a razão em um plano mais elevado, mas que também não é suficiente. As explicações, sobretudo as dos outros, dificilmente têm efeito construtivo, às vezes até atrapalham porque, em geral, já passaram pela mente da própria pessoa atingida pelas consequências da tragédia. Importante é não se desesperar e acreditar que o reequilíbrio é conseqüência natural da continuidade dos acontecimentos, observados com atenção; a própria mente, se deixada sem uma busca incessante de solução, poderá se auto-recompor encarando uma nova realidade, primeiro como suportável e depois como natural no processo de vida. Certamente não é fácil atingir essa compreensão, esse nível em que volta a ser possível a pessoa ser feliz.

As explicações dadas pelos familiares, pelo marido e pela mãe, não satisfaziam Becca, e sua situação se complicava com os conflitos que tinha com a irmã. Sem saída ela buscou, por ela mesma, um caminho que poderia parecer absolutamente incompreensível: dialogar com o rapaz que foi o responsável pelo último ato que levou à tragédia. Uma nova perspectiva surge, então, com base na imaginação. Jason desenhava uma história em quadrinhos intitulada “Rabbit Hole”, um título retirado da história “Alice no País das Maravilhas”, um mundo de sonho, de fantasia. E havia um livro sobre universos paralelos, leitura do rapaz que Becca descobriu em uma biblioteca para onde o seguira. A mulher especula sobre a existência de um mundo no qual ela seria uma pessoa alegre.

Becca se aproximou de Jason. O que diria Howie sobre isto?

Assim, o inesperado, o encontro casual com Jason, surge como opção e escolhido por Becca para realizar uma busca até então sem rumo, encontrar um significado para a vida inexistente desde a morte do filho. É o inusitado também para o espectador. E pelo menos uma questão surge: como garantir continuidade e homogeneidade à história entrando-se praticamente em um mundo paralelo, uma nova realidade? A mãe e o atropelador do filho em um relacionamento improvável e a manutenção da vida familiar? John Cameron Mitchell consegue e muito bem. A dificuldade maior era, penso, dar credibilidade aos comportamentos desses dois personagens. Nicole Kidman está excelente, opera a transição psicológica com muita sensibilidade; Miles Keller está à altura do desafio. Diane Wiest não é mais a mulher bela de antes, mas continua uma bela atriz, mantém o belo sorriso que termina com os olhos fechados. Aaron Eckhart , que desiste de um encontro amoroso com uma companheira de grupo de ajuda mútua Gaby (Sandra Oh) por amor à Becca e se enfurece ao ver Jason entregar sua história em quadrinhos à sua mulher, desempenha com convicção o papel do marido paciente e preocupado, vivendo também o drama da tragédia. Tammy Blanchard é a irmã Izzy, faz bem a jovem liberta, contraponto a Becca. Giancarlo Esposito como o pai do filho que Izzy espera está bem no papel. Sandra Oh faz bem a mulher que poderia ser um consolo para amenizar a falta que Howie sentia de Becca. Se destaquei esses atores/personagens foi porque tiveram grande importância no conjunto do drama. Importantes todos, mas Nicole Kidman é quem sustenta com muita firmeza as alternâncias comportamentais da personagem.

Tratar de uma perda trágica, no caso a morte precoce de um filho criança, uma espécie de quebra da normalidade cronológica da vida quando se diz que os pais não devem sobreviver aos seus descendentes, é um tema recorrente na literatura e no cinema. Assim, não é novidade ao ser desenvolvido em Reencontrando a Felicidade. No entanto, o que há de novo, de criativo no filme, é o tipo de tratamento dado, melhor dizendo, a vertente escolhida, muito bem trabalhada pelo roteirista, que é o próprio autor da história, e pelo diretor do filme. O caminho psicológico recomendado pela padrão de solução é seguido, mas há um elemento novo que se torna chave nas especulações, avaliações e mudança comportamental da personagem principal: a existência de mundos paralelos. No caso não interessa se essa possibilidade tem fundamento científico ou se está no domínio da ficção científica, interessa que tenha existência no mundo psicológico e funcione como uma alternativa para o retorno à compreensão e à racionalidade, entender a imprevisibilidade da vida. John Cameron Mitchell foi muito competente e sensível como avalista dessa vertente e conduziu a narrativa, o desenvolvimento do filme, em um nível superior de percepção humana e artística, validando a alternativa ao personagem para aceitar como instrumento de revisão comportamental. A riqueza do cinema não está somente em descobrir temas novos, mas tratar temas novos ou recorrentes de modo criativo.