quinta-feira, 16 de setembro de 2010

A Ilha Nua

Revi A Ilha Nua (Hadaka no Shima, Japão, 1960), filme dirigido por Kaneto Shindo, que é também autor do roteiro, na manhã do dia 9 de agosto de 2010, antecedendo a exibição à noite do mesmo dia no Instituto de Artes do Pará (IAP), uma programação do cineclube Alexandrino Moreira e da Associação de Críticos de Cinema do Pará (ACCPA), momento em que, também, estive presente.

Após a exibição no IAP, minha primeira manifestação foi considerar A Ilha Nua um belo filme, composto exemplarmente em imagens diversificadas quanto à amplitude e a duração dos planos, destacando a natureza: ilha, rios, montes, céu, nuvens, sol em expressivos planos gerais, de conjunto e de detalhe e inserindo nela uma família que vive isolada na ilha em seu trabalho local de agricultura, e eventual pesca, e nas necessárias idas ao continente em busca de água para irrigação e para levar os dois filhos, que também colaboram nos trabalhos de subsistência, para estudar.

O filme não tem diálogos e nem qualquer explicação oral ou escrita de complemento à narrativa, há apenas caracteres em japonês por cima de uma imagem de transição que indicam as mudanças nas estações climáticas, e só.

Realço a importância fundamental dos sons: som de água caindo sobre água quando enchem os baldes no continente para levá-los à ilha, barulho de água na terra ao irrigarem o solo, som da chuva caindo, do remo do barco na água para movimentá-lo, de motores de barcos deslizando no rio, só para citar os que envolvem água. A música é outro elemento fundamental e tem papel significativo como componente dramático; é clara a mudança de tom e de ritmo quando um dos meninos adoece gravemente, para citar um só exemplo. A música, em certos momentos, tem a função de manter a continuidade ao permanecer a mesma em mudança de cenas. O cântico das crianças da escola e em uma representação popular com dança, uma manifestação de cultura do povo, são intercalados á vida da família que também faz um passeio de barco motorizado e anda na cidade para comercializar seus produtos e também para passear. Quando olham a imagem de uma mulher na televisão em movimentos corporais rítmicos, indica-se a brutal diferença e oposição à vida que levavam.

A tarefa de buscar água no continente, transportá-la no barco deles mesmos, a subida no morro da ilha com os baldes e a irrigação das culturas são recorrentes e tem a função de reforçar o estilo de vida da família, a disciplina necessária à sobrevivência, o trabalho árduo. A importância dessa atividade é demonstrada quando a mulher deixa cair um balde e a água nele contido é derramada; o homem aproxima-se dela e, em vez de ajudá-la logo, primeiro a esbofeteia; ela cai e só depois, sim, ele vai ajudá-la; ela, conformada, volta à tarefa e os dois carregam juntos o outro balde.

Há época de semear, de colher, de comercializar. A ilha, mostrada isolada próximo ou em panoramas abrangendo o rio e o céu, em belos planos gerais ou como pano de fundo das travessias de barco, é o ponto de referência de dia ou de noite.

O ritmo do filme se altera quando um dos meninos adoece. A mudança de tom e de cadência da música de fundo já registrados é o primeiro indicativo da tragédia que se aproxima quando o outro garoto entra e sai da modesta casa na ilha e olha para o mar, os pais estão vindo no barco, ainda longe. O menino faz giros com o braço direito para os pais observarem; os dois percebem que algo de ruim está acontecendo; o homem acelera os movimentos com o remo, estão tensos. Constatada a doença, o homem vai para o continente em busca de auxílio. A calma com que ele executava as tarefas se transforma em pressa, agonia, o ritmo do filme é acelerado. O médico é levado à ilha tarde demais, o menino está morto. À noite, um contraste: a mulher olha em direção ao continente, nos céus explodem fogos de artifício, mas seu filho está morto.

No enterro chegam do continente, de barco, os colegas de escola e a professora do menino. Há um cortejo fúnebre. A cerimônia é simples: um pequeno caixão de madeira, uma cova no terreno, um religioso que viera com o grupo faz orações, buquês de flores são atirados sobre o caixão na cova; a mãe volta correndo a casa, pega uma espada que estava pendurada na parede, volta à cova, e coloca a espada em cima do pequeno caixão; todos colocam pedaços de madeira sobre a cova; tudo feito com belas imagens; os visitantes voltam ao continente; um plano distante destaca o morro da ilha onde está a cova do menino de onde sai fumaça: o corpo está sendo cremado. Depois os pais retornam e, com pás, jogam terra sobre a cova; o outro filho observa. Um rápido plano mostra uma haste vertical sobre o túmulo com inscrições e flores no chão, indicando que se passou algum tempo. Perdoem esta pobre descrição, é apenas uma referência, a bela composição feita por Kaneto Shindo é de uma beleza indescritível por palavras; vejam o filme.

Voltam ao trabalho, estão irrigando o terreno. A mulher para, atira um dos baldes d’água no chão, arranca plantas com as mãos, joga-se no solo em desespero, chora, grita. O homem a olha com tristeza. Pela atitude anterior quando a mulher derramara um balde e fora esbofeteada poderia se esperar um comportamento violento semelhante do homem, mas a expressão dele é de quietude. Ele retoma a irrigação, a mulher se recompõe e também volta a irrigar as plantas.

Vista da ilha, do mar, a câmera balança como se estivesse em um barco. Passa-se para um plano geral: o mar, montes, o céu iluminado por um sol poente, nuvens brilham, em partes estão escuras, um barco desliza ao longe.

Foco no mar, no barco, o casal retoma a rotina, ele vai ao leme-remo impulsionando a canoa. A música reforça a quietude, calmaria. A mulher se levanta, estão chegando à ilha, joga a âncora na água. Os dois sobem o morro carregando, cada um, dois baldes suspensos por cordas nas extremidades de uma vara que eles apóiam nos ombros. Música de fundo com vozes de um côro. Eles continuam subindo, com cuidado para não caírem e nem derrubarem os baldes com a preciosa água. Eles subindo, agora o céu ao fundo. Chegam onde há pequenas plantas crescendo, arriam os baldes maiores que carregavam cheios de água, pegam baldes pequenos com hastes, cada um com um balde e os mergulham na água; voltam a irrigar o solo. Fisionomias apáticas e sofridas, conformadas, a água penetra no terreno seco, a música é forte. A câmera passa a focar de cima, afasta-se do terreno, mostra os dois na ilha, bem do alto, o terreno tem vários níveis de curvas plantadas. A câmera continua se afastando, subindo, até que toda a ilha aparece, o mar em volta. A tela escurece.

Kaneto Shindo em “A Ilha Nua” conta uma história com início, meio e fim, por sinal muito bem narrada em imagens sem diálogos ou explicações verbais. Os momentos de vida da família que mora na ilha, na verdade são os únicos habitantes nela, são a base para uma obra que vai muito além de uma experiência de trabalhar o poder expressivo da imagem cinematográfica com a associação da música, de sons da natureza e barulhos das atividades humanas, deixando de lado as palavras. Na verdade, o filme é tão bem construído que não se sente falta de explicações adicionais, escritas ou faladas.

Tanto o ritmo de vida dos personagens como o realce que lhe é dado com a repetição meticulosa e funcional de suas atividades diárias são elementos definidores de uma intenção especulativa sutilmente inserida numa primorosa composição artística.

Ao mesmo tempo em que é criativo Shindo é também sistemático e objetivo, às vezes deixa a narrativa para documentar, na busca de um sentido para a vida. Ao expor uma situação humana de quase isolamento não significa que ele a defenda ou indique qualquer alternativa, ele deixa a análise para o espectador, até se for ocaso, comparando com a própria vida. O que foi despertado em mim, primeiramente, foi a sensibilidade estética e, ao término do filme, uma valorização da vida e a necessidade de nunca desistir: aconteça o que acontecer, não se desespere, a vida deve continuar. A dimensão dessa mensagem foi captada por mim quando assisti pela primeira vez “A Ilha Nua”, em 1971 ou 72, quando realizava o mestrado na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Àquela altura tive que redobrar meus esforços para concluir o curso e quando assisti ao filme foi como se algo mais despertasse em mim tanto que até hoje permanece essa impressão e que ficou reforçada após revê-lo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário